domingo, 28 de outubro de 2018

A Relíquia. Eça de Queirós. «E não lhe bastava reprovar o amor como cousa profana; a senhora Patrocínio Neves fazia uma carantonha, e varria-o como cousa suja»

Cortesia de wikipedia e jdact

Sobre a nudez forte da verdade. O manto diáfano da fantasia
«(…) Corri, delirante a enfiar a casaca. E este foi o começo dessa anelada liberdade que eu conquistara laboriosamente, vergando o espinhaço diante da Titi, macerando o peito diante de Jesus! Liberdade bem-vinda, agora que Eleutério Serra partira para Paris, fazer os seus fornecimentos, e deixara a Adélia só, solta, bela, mais jovial, mais fogosa! Sim, decerto, eu ganhara a confiança da Titi com os meus modos pontuais, sisudos, servis e beatos! Mas o que a levara a alargar assim, com generosidade as minhas horas de honesto recreio, fora (como ela disse confidencialmente ao Padre Casimiro) a certeza de que eu me portava com religião e não andava atrás de saias. Porque para a tia Patrocínio todas as acções humanas, passadas por fora dos portais das igrejas, consistiam em andar atrás de calças ou andar atrás de saias; e ambos estes doces impulsos naturais lhe eram igualmente odiosos! Donzela, e velha, e ressequida como um galho de sarmento; não tendo jamais provado na lívida pele senão os bigodes do comendador G. Godinho, paternais e grisalhos; resmungando incessantemente, diante de Cristo nu, essas jaculatórias das horas de piedade, soluçantes de amor divino, a Titi entranhara-se, pouco a pouco, de um rancor invejoso e amargo a todas as formas e a todas as graças do amor humano.
E não lhe bastava reprovar o amor como cousa profana; a senhora Patrocínio Neves fazia uma carantonha, e varria-o como cousa suja. Um moço grave, amando seriamente, era para ela uma porcaria! Quando sabia de uma senhora que tivera um filho, cuspia para o lado, rosnava, que nojo! E quase achava a natureza obscena por ter criado dous sexos. Rica, apreciando o conforto, nunca quisera em casa um escudeiro, para que não houvesse na cozinha, nos corredores, saias a roçar com calças. E apesar de irem embranquecendo os cabelos da Vicência, de ser decrépita e gaga a cozinheira, de não ter dentes a outra criada chamada Eusébia, andava-lhes sempre remexendo desesperadamente nos baús, e até na palha dos enxergões, a ver se descobria fotografia de homem, carta de homem, rasto de homem, cheiro de homem. Todas as recreações moças: um passeio gentil com senhoras, em burrinhos; um botão de rosa orvalhado oferecido na ponta dos dedos; uma decorosa contradança em jucundo dia de Páscoa; outras alegrias, ainda mais cândidas, pareciam à Titi perversas, cheias de sujidade, e chamava-lhes relaxações. Diante dela já os sisudos amigos da casa não ousavam mencionar dessas comoventes histórias, lidas nas gazetas, e em que transparecem motivos de amor, porque isso a escandalizava como o desbragamento de uma nudez.
Padre Pinheiro! Gritou ela um dia furiosa, com os óculos chamejantes para o desventuroso eclesiástico, ao ouvi-lo narrar de uma criada que em França atirara o filho à sentina. Padre Pinheiro! Faça favor de me respeitar... Não é lá pela latrina! É pela outra porcaria! Mas era ela própria que sem cessar aludia a desvarios e a pecados da carne, para os vituperar, com ódio; atirava então o novelo de linha para cima da mesa, espetando-lhe raivosamente as agulhas de meia, como se trespassasse ali, tornando-o para sempre frio, o vasto e inquieto coração dos homens. E quase todos os dias, com os dentes rilhados, repetia (referindo-se a mim) que se uma pessoa do seu sangue, e que comesse o seu pão, andasse atrás de saias, ou se desse a relaxações, havia de ir para a rua, escorraçado a vassoura, como um cão.
Por isso agora as minhas precauções eram tão apuradas que, para evitar me ficasse na roupa ou na pele o delicioso cheiro da Adélia, eu trazia na algibeira bocados soltos de incenso. Antes de galgar a triste escadaria da casa, penetrava subtilmente na cavalariça deserta, ao fundo do pátio; queimava no tampo de uma barrica vazia um pedaço da devota resina; e ali me demorava, expondo ao aroma purificador as abas do jaquetão e as minhas barbas viris... Depois subia; e tinha a satisfação de ver logo a Titi farejar, regalada: Jesus, que rico cheirinho a igreja! Modesto, e com um suspiro, eu murmurava: sou eu, Titi... Além disso, para melhor a persuadir da minha indiferença por saias, coloquei um dia, no soalho do corredor, como perdida uma carta com selo, certo que a religiosa Patrocínio, minha senhora e tia, a abriria logo, vorazmente. E abriu, e gostou. Era escrita por mim a um condiscípulo de Arraiolos: e dizia, em letra nobre, estas cousas edificantes: saberás que fiquei de mal com o Simões, o de filosofia, por ele me ter convidado a ir a uma casa desonesta. Não admito destas ofensas. Tu lembras-te bem como já em Coimbra eu detestava tais relaxações. E parece-me ser uma grandíssima cavalgadura aquele que, por causa de uma distracção que é fogo-viste-linguiça, se arrisca a penar, por todos os séculos e séculos, amém, nas fogueiras de Satanás, salvo seja! Ora, numa dessas refinadíssimas asneiras não é capaz de cair o teu do C. Raposo». In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.

Cortesia de ELBrasil/JDACT