domingo, 28 de outubro de 2018

A Relíquia. Eça de Queirós. «Eu murmurei, requebrado, a babar-me de gosto devoto: lá o terço, Titi, lá o meu querido terço não perdia eu, nem pelo maior divertimento... Nem que El-Rei me convidasse para um chazinho no paço!»

Cortesia de wikipedia e jdact

Sobre a nudez forte da verdade. O manto diáfano da fantasia
«(…) Eu ia enfiar as botas; e, autorizado agora por ela a recrear-me fora de casa até às nove e meia, corria ao fim da Rua da Madalena, ao pé do Largo dos Caídas. Aí, com resguardo, encolhido na gola do meu sobretudo, cosido com o muro, como se o candeeiro de gás que ali havia, fosse olho inexorável da Titi, penetrava sofregamente na escadinha da Adélia... Sim, da Adélia! Porque nunca mais me esquecera, desde a noite em que o Rinchão me levou ao Salitre, o beijo que ela me dera, lânguida e branca, sobre o sofá. Em Coimbra procurara mesmo fazer-lhe versos; e esse amor dentro do meu peito foi, no último ano de Universidade, no ano de direito eclesiástico, como um maravilhoso lírio que ninguém via e que perfumava a minha vida... Apenas a Titi me estabeleceu a mesada das três moedas, corri em triunfo ao Salitre; lá havia as roseirinhas à janela, mas a Adélia já lá não estava. E foi ainda o prestante Rinchão que me mostrou esse primeiro andar, junto ao Largo dos Caídas, onde ela agora vivia patrocinada por Eleutério Serra, da firma Serra Brito & Cia, com loja de fazendas e modas na Conceição Velha. Mandei-lhe uma carta ardente e seria, pondo reverentemente no alto: Minha senhora. Ela respondeu, com dignidade: o cavalheiro pode vir aqui ao meio-dia. Levei-lhe uma caixinha de pastilhas de chocolate, atada com uma fita de seda azul; pisando comovido a esteira nova da sala eu antevia, pela engomada brancura das bambinelas, a frescura das suas saias; e o rígido alinho dos móveis revelava-me a rectidão dos seus sentimentos. Ela entrou, um pouco constipada, com um xaile vermelho pelos ombros. Reconheceu logo o amigo do Rinchão; falou da Ernestina, com severidade, chamando-lhe porcalhona. E a sua voz enrouquecida, o seu defluxo, davam-me o desejo de a curar nos meus braços, de um longo dia de agasalho e sonolência, sob o peso dos cobertores, na penumbra mole da sua alcova. Depois ela quis saber se eu era empregado ou estava no comércio... Eu contei-lhe com orgulho a riqueza da Titi, os seus prédios, as suas pratas. Disse-lhe, com as suas mãos grossas presas nas minhas: se a Titi agora rebentasse, eu é que lhe punha a menina uma casa chic!
Ela murmurou, banhando-me todo na negra doçura do seu olhar: ora! O cavalheiro, se apanhasse o bago, não se importava mais comigo! Ajoelhei sobre a esteira, trémulo, esmagando o peito contra os seus joelhos, ofertando-me como uma rês; ela abriu o seu xaile; aceitou-me misericordiosamente. Agora, à noitinha (enquanto Eleutério, no clube da Rua Nova-do-Carmo, jogava a manilha), eu tinha ali na alcova da Adélia a radiante festa da minha vida. Levara para lá um par de chinelas, era o eleito do seu seio. às nove e meia, despenteada, envolta à pressa num roupão de flanela, com os pés nus, acompanhava-me pela escadinha de trás, colhendo em cada degrau, nos meus lábios, um beijo lento e saudoso. Adeus, Delinha! Agasalha-te, riquinho!
E eu recolhia devagar ao Campo de Santana, ruminando o meu gozo! O Verão passou, languidamente. Os primeiros ventos de Outono levaram as andorinhas e as folhagens do Campo de Santana; e logo nesse Outubro, de repente, a minha vida se tomou mais fácil, mais larga. A Titi mandara-me fazer uma casaca; e eu estreei-a, com permissão dela, indo ouvir a São Carlos o Poliuto, ópera que o Doutor Margaride recomendara, como repassada de sentimentos religiosos e cheia de elevada lição. Fui com de, de luvas brancas, frisado. Depois, no outro dia, ao almoço, contei à Titi o devoto enredo, os ídolos derrubados, os cânticos, as fidalgas que estavam nos camarotes, e de que lindo veludo vestia a rainha.
E sabe quem me veio falar, Titi? O barão de Alconchel, o ricaço, tio daquele rapaz que foi meu condiscípulo. Veio apertar-me a mão; esteve um bocado comigo no salão... Tratou-me com muita consideração. A Titi gostou desta consideração. Depois, tristemente, como um moralista magoado, queixei-me do nédio decote de uma senhora imodesta, nua nos braços, nua no peito, mostrando toda essa carne, esplêndida e irreligiosa, que é a desolação do justo e a angústia da Igreja. Jesus, Senhor, que vexame! Acredite a Titi, estava com nojo! A Titi gostou deste nojo. E passados dias, depois do café, quando eu me dirigia, ainda de chinelas, ao oratório, a fazer uma curta petição às chagas do nosso Cristo de ouro, a Titi, já de braços cruzados e sonolenta, disse-me dentre a sombra do lenço: está bom, se queres, volta hoje a São Carlos... E lá quando te apetecer, não te acanhes, tens licença, podes ir gozar um bocado de música... Agora que estás um homem, e que parece que tens propósito, não me importa que fiques fora, até às onze ou onze e meia... Em todo o caso a essa hora quero estar já de porta fechada, e tudo pronto, para começarmos o terço.
Ela não viu o triunfante lampejar dos meus olhos. Eu murmurei, requebrado, a babar-me de gosto devoto: lá o terço, Titi, lá o meu querido terço não perdia eu, nem pelo maior divertimento... Nem que El-Rei me convidasse para um chazinho no paço!» In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.

Cortesia de ELBrasil/JDACT