sábado, 6 de outubro de 2018

O Erotismo. Georges Bataille. «É sem dúvida arbitrário sempre opor a abnegação, que está na base do trabalho, a movimentos tumultuosos cuja necessidade não é constante»

jdact e wikipedia

«(…) Se observamos o interdito, se a ele nos submetemos, não temos mais consciência dele. Mas sentimos no momento da transgressão si angústia sem a qual o interdito não existiria: é a experiência do pecado. A experiência leva à transgressão realizada, à transgressão bem sucedida que, sustentando o interdito, sustenta-o para dele tirar prazer. A experiência interior do mutismo exige de quem a pratica uma sensibilidade bem maior ao desejo que leva a infringir o interdito que à angustia que o funda. É a sensibilidade religiosa, que liga sempre estreitamente o desejo e o medo, o prazer intenso e a angústia. Os que ignoram (ou que provam só furtivamente) os sentimentos de angústia, náusea e horror comuns às jovens do século passado não são susceptíveis a isso, acontecendo o mesmo com os que limitam tais sentimentos. Esses sentimentos nada têm de doentio; mas são, na vida de um homem, o que é a crisálida para um animal perfeito. A experiência interior do homem é dada no instante em que, rompendo a crisálida, ele tem consciência de se rasgar a si mesmo e não a resistência colocada de fora. O ultrapassar da consciência objectiva, que as paredes da crisálida limitavam, está relacionado com essa mudança radical.

O interdito ligado à morte
A oposição do mundo do trabalho ou da razão ao mundo da violência.
De qualquer maneira, o homem pertence a um e a outro desses dois mundos entre os quais a sua vida, por mais que ele esteja atento, é dividida. O mundo do trabalho e da razão é a base da vida humana, mas o trabalho não nos absorve inteiramente e, se a razão comanda, nossa obediência nunca é sem limite. Com o seu trabalho, o homem edificou o mundo racional, mas sempre subsiste nele um fundo de violência. A própria natureza é violenta e, por mais comedidos que sejamos, uma violência pode-nos dominar de novo, que não é mais a violência natural, a violência de um ser racional que tentou obedecer, mas que sucumbe ao movimento que ele mesmo não pôde reduzir à razão. Há na natureza e subsiste no homem um movimento que sempre excede os limites e que nunca pode ser reduzido senão parcialmente. Em geral não podemos prestar contas desse movimento. Ele é mesmo por definição aquilo que nada justificará jamais, mas vivemos sensivelmente sob o seu poder: o universo onde vivemos não responde a nenhum fim que a razão limita, e se tentamos fazê-la responder a Deus, não fazemos senão associar insensatamente o excesso infinito, em cuja presença está a nossa razão, a essa mesma razão. Mas pelo excesso que nele existe, esse Deus, cujo sentido gostaríamos de apreender, não pára, ao exceder esse sentido, de exceder os limites da razão.
Na nossa vida o excesso manifesta-se na medida em que a violência prevalece sobre a razão. O trabalho exige um comportamento em que o cálculo do esforço, ligado à eficácia produtiva, é constante. Ele exige uma conduta sensata, onde os movimentos tumultuosos que se liberam na festa, e geralmente no jogo, não são decentes. Se não pudéssemos refrear esses movimentos, não seríamos susceptíveis ao trabalho, mas o trabalho introduz justamente a razão de refreá-los. Esses movimentos dão aos que a eles sucumbem uma satisfação imediata: o trabalho, ao contrário, promete aos que os dominam um lucro posterior, cujo interesse não pode ser discutido, a não ser do ponto de vista do momento presente. Desde os tempos mais remotos (o trabalho fundou o homem: os primeiros sinais da sua existência são os instrumentos de pedra. Bem remotamente, parece que o australopiteco, ainda longe da forma acabada com que hoje o representamos, deixou tais instrumentos: ele viveu há cerca de um milhão de anos antes de nós, enquanto o homem de Neandertal, ao qual remontam as primeiras sepulturas, não nos precede senão de alguns cem mil anos), o trabalho introduziu uma pausa em cujo nome o homem deixava de responder ao impulso imediato que comandava a violência do desejo. É sem dúvida arbitrário sempre opor a abnegação, que está na base do trabalho, a movimentos tumultuosos cuja necessidade não é constante. O trabalho começado cria, entretanto, uma impossibilidade de responder a essas solicitações imediatas que podem nos tornar indiferentes a resultados desejáveis mas cujo interesse relaciona-se apenas com o futuro. A maior parte do tempo o trabalho é a ocupação de uma colectividade, e a colectividade deve-se opor, no tempo reservado ao trabalho, aos movimentos de excesso contagioso em que nada mais existe, a não ser o abandono imediato ao excesso. Isto é, à violência. Da mesma forma, a colectividade humana, em parte consagrada ao trabalho, define-se nos interditos, sem os quais ela não se teria transformado neste mundo de trabalho que ela é essencialmente». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972-608-018-3.

Cortesia de L&PM/E Antígona/JDACT