quarta-feira, 3 de outubro de 2018

As Memórias de Cleópatra. Margaret George. «Nem o deixou seguro no trono. Será que era de se admirar então que ele procurasse consolo no vinho e na música de Dionísio, seu deus protector?»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Filha de Isis
O primeiro pergaminho. Calor. Vento
«(…) Entregue as flores a ela, diz a ama. Devagar levanto a mão e ponho a minha pequena oferta no pedestal até onde posso alcançar. Olho para cima de novo, esperando ver a estátua sorrir, e imagino que ela sorri mesmo. Foi assim, Isis, que naquele dia eu me tornei a sua filha. Minha mãe, a falecida rainha, chamava-se Cleópatra, e tenho orgulho de ter o mesmo nome. Mas teria orgulho de qualquer maneira, porque Cleópatra é um nome digno na história de nossa família, que vem desde a irmã de Alexandre, O Grande, de quem nós, os Ptolomeu, somos descendentes. O nome quer dizer Glória para a sua descendência, e por toda a minha vida e reino tenho tentado cumprir a promessa do meu nome. Tudo o que fiz, fiz em nome da preservação de minha herança e do Egipto. Todas as mulheres da minha linhagem eram chamadas Cleópatra, Berenice ou Arsínoe. Estes nomes também vêm da Macedónia, onde a nossa família se originou. Assim, as minhas duas irmãs mais velhas se chamam Cleópatra (sim, éramos duas) e Berenice, e minha irmã mais nova se chama Arsínoe. Irmã mais nova..., houve outros irmãos depois de mim. Porque o rei precisou casar de novo. Assim, logo depois da morte repentina da sua Rainha Cleópatra, ele recebeu uma esposa nova e ela imediatamente deu à luz a minha irmã Arsínoe. Mais tarde, teve mais dois filhos, com os quais me casei por um curto período. Logo depois, ela também morreu, deixando meu pai viúvo de novo. Desta vez ele não se casou de novo. Eu não dava muita importância para a nova esposa de meu pai, ou para a minha irmã Arsínoe, que era pouco mais de três anos mais nova do que eu. Desde muito pequena, era sonsa e mentirosa, manhosa e brigona. Não ajudava o facto de que era muito bonita, o tipo de criança que todo mundo olha e diz: de onde tirou olhos assim?', e não apenas por delicadeza. Isto lhe concedeu arrogância desde o berço, porque ela via nisso não uma dádiva para ser apreciada, mas um poder para ser usado. Minha irmã Cleópatra tinha dez anos a mais do que eu, e Berenice, oito. Como eram privilegiadas de terem tido a companhia da minha mãe por mais tempo do que eu! Não que demonstrassem qualquer agradecimento por isso. A mais velha era uma criatura melancólica e submissa; na verdade, sequer me lembro bem dela. E Berenice, esta era um touro de mulher, ombros largos, voz áspera, com pés largos e chatos que faziam até mesmo o seu caminhar normal parecer uma marcha. Nada nela lembrava a nossa antepassada, a delicada Berenice II, que reinou com Ptolomeu III duzentos anos antes e tornou-se lendária como uma beleza de forte personalidade que inspirava os poetas da corte. Nada da resfolegante Berenice de rosto avermelhado inspiraria tais demonstrações de ardor. Eu me deliciava por saber que eu era a predilecta do meu pai. Não me pergunte como uma criança sabe dessas coisas. O facto é que sabe, não importa o quanto os pais tentem esconder. Talvez fosse porque eu achava a outra Cleópatra e Berenice tão estranhas que não fosse possível imaginar alguém sendo mais inclinado a elas do que a mim. Mais tarde, mesmo depois que Arsínoe veio ao mundo com toda a sua beleza, continuei a ocupar o primeiro lugar no coração de meu pai. Sei agora que era porque eu fui a única que mostrou qualquer afeição por ele. Devo admitir honestamente, mas com certa relutância: o resto do mundo (inclui-se aí as suas próprias filhas) achava meu pai deplorável ou cómico, ou talvez ambos. Ele era um homem bonito e frágil, com um jeito sonhador e difidente, que logo se transformava em nervosismo quando ele se sentia atacado. As pessoas o culpavam por ser o que era, um artista por natureza, flautista e dançarino, e pela situação que herdou. O que ele era, não podia mudar, e o que ele herdou era um legado infeliz. Não era culpa dele que, quando chegou a sua vez de tomar o trono, a nação estivesse praticamente nas garras dos romanos, tornando necessária uma série de posições indignas para manter seu trono intacto. Posições que incluíam rastejar, adular, descartar o seu irmão, pagar quantias exorbitantes em suborno e divertir os seus odiados potenciais conquistadores na sua própria corte. Isto, obviamente, não o fez amigo do povo. Nem o deixou seguro no trono. Será que era de se admirar então que ele procurasse consolo no vinho e na música de Dionísio, seu deus protector? Quanto mais ele procurava este conforto, mais desprezo ele gerava. O magnífico banquete oferecido por meu pai a Pompeu, o Magno: eu tinha sete anos na época e estava ansiosa por ver os romanos, romanos de verdade (quero dizer, os romanos perigosos, não aqueles mercadores inofensivos e os sábios que apareciam em Alexandria para conduzir negócios). Insisti com o meu pai para me deixar participar, sabendo muito bem como persuadi-lo, já que ele fazia quase tudo que eu pedia, se fosse razoável. Quero vê-lo, disse. O famoso Pompeu. Que aparência ele tem?» In Margaret George, As Memórias de Cleópatra, 1997, tradução de Lídia Zanon, Geração Editorial, 2000-2001, Edições Chá das Cinco, 2007, IBSN- 978-989-803-200-3.

Cortesia de GEditorial/ECdasCinco/JDACT