terça-feira, 2 de outubro de 2018

A Verdadeira História. Margaret George. «O imperador romano morreu. Natã entrou em casa a passos largos e pôs a cesta no chão. É por isso que há toda essa balbúrdia lá fora»

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A Mulher que Amou Jesus
«(…) Tentando ser reverente, ela enumerou, obediente, todos os dez mandamentos, com a cabeça baixa. Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura. Não as adorarás, nem prestarás culto. Asera! Mas não fui eu quem a fez, pensou Maria, nem a reverencio nem a adoro. Além disso, não vou ficar com ela. Prometo! Não tomarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão. Não, não faço isso. Só uso o nome de Javé nas minhas orações. Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Sempre fazemos isso. Sempre cumprimos as regras. Mas então, lembrou-se de ter concordado com a decisão de José de violar uma dessas regras. Será que isso me faz culpada?, pensou. Honra teu pai e tua mãe. As aulas! As aulas de leitura secretas! Sentiu-se profundamente atingida de culpa. Mas, por outro lado, achava que nada havia de errado com as aulas, excepto pelo facto de ter de mentir sobre elas. Não matarás. Suspirou, aliviada. Não adulterarás. Outro suspiro de alívio. Não dirás testemunho contra o teu próximo. Ainda criança, ela não poderia ser ouvida como testemunha legal, portanto estava a salvo desse pecado. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Ela cobiçava a casa de Quezia, mas não pelo que existia na casa propriamente dita, e sim pelo ambiente criado pelas pessoas que lá moravam. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo. Aí, ela pecara, e bastante. Havia tantas coisas que cobiçava, que desejava ter para si. Não o conseguia evitar, quando olhava para elas e eram tão atraentes...
Isso não é desculpa! A voz forte de Javé parecia ressoar em seus ouvidos. Mas tem de haver mais do que isso, pensou. Essas dez coisas são tão grandes. E as coisas pequenas, do dia a dia? Assassinato não é uma coisa do dia a dia. Para mim, o verdadeiro pecado é... É como fazer uma coisa que sabe que é errada, pensou Maria. É errado eu ir às aulas de leitura, mesmo que eu ache certo aprender a ler, se minha mãe e meu pai não querem que eu aprenda? E pensamentos ruins? Os rabinos não falam disso, mas são eles que levam a todo o resto, pensou. Há a raiva, querer que alguém fique doente, falar mal dos outros pelas costas... Há tanta coisa que qualquer pessoa pode fazer sem transgredir a lei oficial. As piores coisas que eu faço são os pensamentos ruins. Para cada coisa ruim que faço, acho que tenho uns cem pensamentos ruins. O seu estômago roncava. Estava morrendo de fome. E a cabeça doía. Isso é para nos lembrar que dependemos de Deus para poder comer, disse a si própria, e para nos lembrar de todas as vezes que esquecemos de agradecer pela comida. Mas doía por dentro e ficava difícil concentrar-se. Sentou-se, obediente, no chão duro de seu quarto, com a fome na cabeça, tentando compreender os mandamentos divinos e reflectindo sobre seus pecados infantis.
O Dia do Perdão parecera interminável. Na hora da refeição, simples, para quebrar o jejum, Natã disse, numa voz mortificada: é por meio da misericórdia de Deus que gozamos da indulgência de viver e de nos arrependermos. Mas, sinceramente, será que daqui a um ano seremos melhores que hoje?, perguntou-se Maria. Ou iriam passar o ano inteiro brigando para controlar os mesmos pecados e continuar pecando? Talvez as pessoas não tentem o bastante, pensou. Vou tentar o máximo possível. E repetiu, balbuciando para si mesma: vou tentar o máximo, é uma promessa. Sabia que Deus a ouvia e exigiria que a cumprisse. E também tenho de livrar-me do ídolo. Tenho de livrar-me de tudo que não satisfaça a Deus.
Ficou mais do que feliz por ir-se deitar, ainda que praticamente não tivesse saído do quarto durante o dia inteiro. Deitada, no escuro, parecia ser uma maneira de baixar uma cortina sobre um dia que tinha sido ruim, ruim devido a lembranças desagradáveis e a uma consciência pesada. Tentarei fazer melhor, prometeu de novo, a si própria e a Deus. Pensou sobre a cabra que deveria agora estar sem rumo, no meio do deserto, carregando consigo o peso dos pecados de um povo. Levaria alguns dias até morrer, se é que iria morrer. Talvez, por algum milagre, encontrasse água e comida. O mistério é que ninguém iria saber.

O imperador romano morreu. Natã entrou em casa a passos largos e pôs a cesta no chão. É por isso que há toda essa balbúrdia lá fora. Durante a noite toda tinham-se ouvido sons distantes, das montanhas, estrondos e barulhos que pareciam sugerir que alguma coisa de errado ocorrera em algum lugar. Talvez fosse o barulho das tropas romanas deixando os seus campos em direcção ao mar, ou chegando do norte, para se reforçarem, em caso de confusão. O rei Herodes Antipas deu ordens para que todos nós observássemos luto oficial, continuou. Não temos de fazer sacrifícios aos deuses romanos, apenas ao nosso Deus, em nome do imperador falecido. Natã parecia aliviado e sumiram as rugas da sua testa, mas tinha envelhecido bastante nesses sete anos que o separavam daquele Dia do Perdão em que a sua filha Maria fizera a promessa a Deus. Estava agora na casa dos 40 anos; as longas horas de um trabalho exigente, nos armazéns de salgar peixe, faziam-se notar. O casamento dos seus dois filhos o aliviara bastante das suas tarefas, mas ainda havia muito trabalho a ser feito». In Margaret George, A Paixão de Maria Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT