segunda-feira, 15 de outubro de 2018

As Noivas do Sultão. Raquel Ochoa. «Está decidido! O ministro levantou a voz, aparentemente procurando a atenção do monge, e começou a ditar para os escribas…»

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13 de Julho de 1793
«(…) Meteu a mão no bornal, no qual sempre carregava peso que lhe parecia inusitado, ao mesmo tempo não sabia sair de casa sem o pequeno cantil, o livro que andava a reler, o Verdadeiro Método de Estudar, de Luís António Verney, e o caderno de apontamentos com o 1ápis associado, a maçã vermelha para algum ataque de fome e um crucifixo de ouro, peça raríssima que devia estar num cofre, mas ele acreditava ser o melhor talismã do mundo, pois cria ter andado nas mãos de Cosme e Damião, santos sírios que o acompanhavam para onde quer que fosse, convencido estava de o terem salvado nas tremendas horas de aflição em alto-mar. A mão apalpou o livro e de seguida o outro de apontamentos que se encaixava num terceiro volume, com uma capa veludosa. Mas que é isto?
Puxou aquele objecto perfumado de eucalipto e não o reconheceu nem ao toque, nem à vista. Afastou-o do rosto e olhou em volta, como se tivesse medo de ser identificado como ladrão de algo que desconhecia. Encontrava-se à beira da sombra de uma casa e desviou-se para a sua copa, ganhando privacidade psicológica na sua protecção. Folheou-o. O rosto estarreceu-se como se trepidado por um raio e não por uma página manuscrita. Como é que um diário ou coisa parecida de alguém daquele barco lhe viera parar à bolsa?, perguntava-se, atemorizado. De coração aos trambolhões, ruborizado e amaldiçoando quem o acordara nessa manhã, chegou frei João à presença do senhor ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos.
Desta feita ninguém o fez esperar e de imediato relatou todas as palavras que ouvira do arrais, tentando ser o mais fiel possível à tradução. Junto do ministro, conseguiu manter-se aparentemente calmo, mas talvez alguma ansiedade o tenha revelado, pois a dado momento aquele perguntou-lhe. Agarra esse bornal como se daí adviesse o ar que respira. Porque não se põe à vontade, o meu criado não lhe disse onde pousar os seus pertences? Disse, disse, mas sou muito distraído, meu senhor, perdoe-me se lhe pareço desconfortável, mas não é de facto esse o meu estado, apenas evito ter de aqui voltar para o recolher. Não lhe ocorreu melhor desculpa.
Felizmente, o ministro, com o tanto que tinha para se ocupar, não fez questão nem insistiu. Ditava algumas ordens aos secretários e os seus textos pareciam eternos. Quando se enganava, amachucando a folha e atirando-a para um molho de desperdícios, o escrivão recomeçava. Frei João sentia um enorme apelo para sair dali, a correr, se pudesse, mas apenas cerrava os dentes em sinal oculto de tensão. Foi olhando para os reposteiros, os cortinados, as carpetes, o papel de parede com flores-de-lis, retocados por cor dourada, a estátua de marfim de um anjo, uma mulher de seios descobertos, os castiçais prateados, o quadro de dona Maria em pose irrepreensível, intuindo a vigia ao gabinete, e a grande tapeçaria pendurada na parede, na qual figurava uma caçada em ponto pequeno perante a grandiosidade de árvores centenárias. A partir de um dado momento, já não tinha mais nada para onde olhar.
Observou então o ministro, apercebendo-se de que dele recebia uma desarmante simpatia. Teve tanto tempo para pensar que até lhe ocorreu mostrar o caderno e ser sincero nos factos ocorridos havia pouco menos de duas horas. A imagem mental do seu crucifixo de ouro em contacto com aquele caderno aveludado quase o condenou a uma curiosidade fatal. Concentrou-se na sombra balouçante das árvores frondosas que via na enorme janela e manteve-se de aspecto sereno.

Não faz sentido dar um manuscrito em árabe a alguém que não sabe traduzi-lo. Faça eu o que fizer, este objecto voltará para mim.

Está decidido! O ministro levantou a voz, aparentemente procurando a atenção do monge, e começou a ditar para os escribas: determino que amanhã se proceda a uma visita ao arrais para ser recebido em diálogo. O monge pensou que seria incumbido de o ir avisar e foi com alívio que ouviu o ministro: que se lhe entregue uma carta escrita por frei João em mãos por um aviso a informá-lo da hora do encontro. Amanhã conto com os seus serviços, meu caríssimo frei João Sousa. Agora também está dispensado. Por hoje! Vá descansar, apenas lhe peço a bênção. Deus esteja consigo.
O criado abriu a porta convidando-o a abandonar os aposentos. Frei João estava finalmente a caminho do seu mosteiro. Naquele dia não voltaria ao livro que o cativava com muito interesse havia alguns dias. Sabia bem que leitura o conduziria ao fim da noite». In Raquel Ochoa, As noivas do Sultão, 2015, Edições Parsifal, 2015, ISBN 978-989-876-008-1.

Cortesia de EParsifal/JDACT