sexta-feira, 19 de outubro de 2018

O Anatomista. Federico Andahazi. «Numa época feita de nomes, de singularidades, Mateo Colombo usava o seu nome como quem carrega um lastro. Como evitar o forçoso lugar nas sombras…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Os últimos alunos que transitavam junto à janela do claustro de Mateo Colombo ficavam nas pontas dos pés e olhavam para o interior; então o anatomista podia ouvir os murmúrios e as risadinhas maliciosas daqueles que, até ontem, tinham sido seus alunos, e mesmo dos que poderiam ter chegado a tornar-se seus fiéis discípulos. Podia vê-los. Embora talvez devesse dar graças pela sua sorte, Mateo Colombo amaldiçoou o dia em que saiu de sua Cremona natal. Amaldiçoou o dia em que o seu actual algoz, o reitor, decidiu colocá-lo à frente da cadeira de anatomia e cirurgia. E amaldiçoou o dia em que, quarenta e dois anos antes, nascera.
Il Chirologi, como diziam os seus conterrâneos, Il Cremonese, no seu exílio em Pádua, Mateo Realdo Colombo havia estudado Farmácia e Cirurgia na Universidade em que agora estava preso. Foi o mais brilhante discípulo de Leoniens, primeiro, e de Vesalio, depois. Quando partiu, em 1542, para fazer escola na Alemanha e na Espanha, o próprio mestre Vesalio sugeriu ao reitor, Alessandro Legnano, que o seu discípulo cremonense herdasse a cátedra. Ainda muito jovem, Mateo Colombo ganhou, por direito, o título de Maestro dei maestri. Para orgulho de Alessandro Legnano, o catedrático cremonense descobriu as leis da circulação pulmonar antes do seu colega, o inglês Harvey, que injustamente recebeu os louros. Muitos o consideraram lunático quando afirmou que o sangue se oxigena nos pulmões e que não existem orifícios no tabique que divide as duas metades do coração, atrevendo-se a refutar o próprio Galeno. E, por certo, aquela era uma afirmação perigosa: um ano antes, Miguel Servet vira-se obrigado a fugir da Espanha quando declarou, no seu Christianismi Restitutio, que o sangue era a alma da carne, anima ipsa est sanguis. A sua tentativa de explicar em termos anatómicos a doutrina da Santíssima Trindade levou-o às fogueiras de Genebra, onde o queimaram com lenhos verdes para prolongar a agonia. Mas os louros da descoberta de Mateo Colombo iriam, cem anos depois, para o inglês Harvey, que, como assinalou Hobbes em De Corpore, foi o único anatomista que viu a sua doutrina ser aceita em vida.
Mateo Colombo era, eminentemente, italiano; filho da plástica, da gala e do ornamento. Filho pródigo daquela Itália na qual tudo, das cúpulas das catedrais até ao copo no qual o lavrador bebia, dos afrescos que enfeitavam os palácios até à foice com que o camponês ceifava, dos capitéis bizantinos das igrejas até ao cajado do pastor, tudo era de uma feitura prodigiosa. Daquela mesma feitura era o espírito de Mateo Colombo; da mesma graça ornamental, da amável gentilezza italiana. Tudo estava animado pelo hálito de Leonardo: o artesão era artista; o artista, cientista; o cientista, guerreiro; e o guerreiro, de novo, artesão. Saber também era, além do mais, saber fazer com as mãos. Caso faltem exemplos, o próprio papa Eugénio I havia cortado com as suas próprias mãos a cabeça de um prefeito um pouco díscolo. Com a mesma mão com que deslizava a pena pelo caderno de capa de pele de cordeiro, Mateo Colombo sabia empunhar o pincel e preparar os óleos com os quais pintou os mais esplêndidos mapas anatómicos; era capaz, se quisesse, de pintar como Signorelli ou o próprio Michelângelo. No seu autorretrato, apresentou-se como um homem de traços finos porém enérgicos; os olhos negros e a barba escura e espessa revelavam, talvez, uma ascendência moura. A testa, alta e proeminente, era emoldurada por dois cachos que desciam até aos ombros. Segundo o seu próprio testemunho, tinha mãos delicadas e pálidas, cujos dedos, longos e finos, conferiam-lhe uma elegância que se diria quase feminina. Segurava o escalpelo entre o indicador e o polegar. O autorretrato não foi apenas um fiel testemunho da sua fisionomia, mas também da sua obsessão; olhando-se bem, pois é francamente difícil perceber, em baixo do bisturi, na base inferior do quadro, pode-se distinguir, em meio a uma bruma difusa, o corpo nu e inerte de uma mulher. A pintura lembra outra, sua contemporânea: o São Bernardo de Sebastiano del Piombo; a desproporção entre a beatitude da expressão do santo e sua atitude, a enfiar o cajado no corpo de um demónio, é a mesma que transparece no gesto do anatomista afundando o escalpelo na carne feminina. Uma expressão de triunfo.
Numa época feita de nomes, de singularidades, Mateo Colombo usava o seu nome como quem carrega um lastro. Como evitar o forçoso lugar nas sombras a que o seu ilustre xará o submetia? Mateo Colombo estava condenado à paródia, à zombaria fácil dos detractores. A sua obra, decerto, não foi menos extraordinária que a do seu homónimo. Ele também descobriu a sua América e, como ele, soube da glória e da desgraça. E soube da crueldade. Mateo Colombo, ao fundar a sua colónia, não teve mais escrúpulos nem piedade que Cristóvão. O madeiro da haste fundadora não estaria fincado nas tépidas areias do trópico, mas no centro das terras descobertas que reclamou para si: o corpo da mulher». In Federico Andahazi, O Anatomista, 1997, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 1998,  ISBN 978-972-232-362-8.

Cortesia de EPresença/JDACT