sexta-feira, 28 de junho de 2019

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «A cama estava impecavelmente feita, a coberta bem esticada, as almofadas na cabeceira. Havia exemplares do Corriere delle Alpi, do La Repubblica, do L’Arena e do L’Osservatore Romano empilhados…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Estava ali para trabalhar, servir a Jesus Cristo, à prioresa, à cónega, às irmãs e aos religiosos e religiosas que escolhiam aquele pedaço de paraíso para se hospedar. A alteração à normalidade ocorreu às cinco e meia, quando o prelado não apareceu, como de costume, para tomar o seu banho revigorante antes do jantar. O carro não surgiu ao fundo da rua. A irmã Bernarda deu por si a pensar no que lhe teria acontecido e não conseguiu evitar um sentimento de inquietação. Quinze minutos depois das seis, desceu à cozinha, no rés-do-chão, para recolher o jantar do seu hóspede e subiu de imediato. Tinha a esperança que ele, entretanto, já tivesse chegado, naquele intervalo.
O coração palpitava de preocupação. Que coisa. Porque se sentiria assim? Dali a poucos dias ele partiria, certamente, para sempre, e nunca mais o veria. Nosso Senhor Jesus Cristo, na Sua eterna bondade, cuidai do reverendo monsenhor e fazei com que nada de mal lhe aconteça, pediu mentalmente. E alivie-me destes pensamentos, acrescentou. Não se atrevia a fazê-lo em voz alta. Seria tornar real aquilo que nunca o poderia ser. Seria confirmar que desde que ele chegara não conseguia focar o seu pensamento em mais ninguém, nem no seu querido Jesus. Pousou a bandeja na mesinha e deixou-se ficar à escuta. O coração continuava a apertar-se no peito de consumição. Obrigou-se a acalmar-se. Nada acontecera. Não havia razão para estar tão alterada. Não se preocupava quando os outros hóspedes regressavam tarde ou não o faziam de todo. O monsenhor Lucarelli não era diferente dos outros. Como continuava a não sentir vida dentro do quarto, só lhe restava esperar. O jantar arrefeceu. Teria de pedir para lhe prepararem outro quando ele chegasse. Entrou na capela privada, ajoelhou-se junto ao altar e pediu à estátua de Cristo que mantivesse o prelado debaixo da Sua luz sábia e acolhedora. Rezou durante horas. Até se esqueceu de jantar, mas não se importou. Não tinha qualquer necessidade de comida naquele momento.
Bernarda deixou a capela depois das duas da manhã quando todo o retiro dormia o sono dos justos aos olhos de Deus. Não havia qualquer sinal do reverendo monsenhor Stephano Lucarelli, que saíra de manhã, por volta das sete horas, e não voltara a ser visto. Cogitou se deveria informar a prioresa da ausência dele ou esperar pela manhã. Uma hora depois, considerou…, com muitas reticências…, entrar no quarto. Da janela do terceiro andar não via nenhuns faróis a iluminar o escuro da noite. As reticências foram ultrapassadas uma hora depois e, às quatro da manhã, entrou nos interditados aposentos do reverendo monsenhor Lucarelli. As luzes estavam apagadas. Apalpou a parede ao lado da porta à procura do interruptor e ligou-o assim que o sentiu. Os aposentos não estavam como esperava encontrá-los ao fim de quatro dias. Parecia que nunca tinham sido utilizados. A cama estava impecavelmente feita, a coberta bem esticada, as almofadas na cabeceira. Havia exemplares do Corriere delle Alpi, do La Repubblica, do L’Arena e do L’Osservatore Romano empilhados simetricamente em cima de uma mesa. A curiosidade levou-a a abrir a porta do quarto de banho. Para além das loções fornecidas pelo retiro, reparou nas dele, perfeitamente alinhadas. Creme de barbear, aftershave, champô, gel de banho, escova de dentes dentro de um copo, pasta dos dentes ao lado e outros cremes que a irmã não quis saber para que serviam.
O seu voto de pobreza cingia-a ao banho diário, obviamente com todos os condimentos comuns mas sem cremes para rugas, esfoliantes, máscaras de beleza, e todas as outras poções da eterna juventude. O outro voto, o de castidade, impedia-a de estar dentro dos aposentos do prelado, sem autorização. Permitiu-se abrir a porta do escritório, só para se certificar de que não encontraria o corpo dele no chão, inanimado. Deus nos livre, murmurou para si mesma. Forçou a maçaneta mas não a conseguiu abrir. A porta estava trancada. Infelizmente, sabia onde havia uma chave, na gaveta de cima da cómoda, e nem pensou duas vezes». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT