sábado, 22 de junho de 2019

A Pedra da Luz. A Mulher Sábia. Christian Jacq. «Nomeado pelo vizir com a aprovação do Faraó, o escriba do Túmulo estava sobrecarregado de trabalho. Competia-lhe velar pela prosperidade da aldeia»

jdact e cortesia de wikipedia

«(…) Era por isso que o escriba do Túmulo esperava todas as manhãs, não sem impaciência, a chegada dos transportadores de água cujos pesados potes permitiam encher as enormes ânforas de barro rosado, cozido de forma homogénea e recoberto com um vidrado amarelo-pálido ou vermelho-escuro, dispostas nas ruelas da aldeia. ao abrigo de proteções a fim de que a frescura do precioso líquido fosse preservada. Algumas dessas ânforas tinham inscritos os nomes de Amenhotep I, de Tutmés III ou da Rainha-Faraó Hatchepsut e serviam para recordar que os soberanos se preocupavam com o bem-estar dos habitantes do Lugar de Verdade. O regulamento era rigoroso: os carregadores despejavam a água pura, várias vezes por dia, em dois reservatórios, um a norte da aldeia e o outro a sul. Os aldeões vinham buscá-la com jarros para encherem as ânforas do interior cujo conteúdo utilizavam para beber, se lavarem ou cozinhar. Não havia penúria desde a criação da confraria mas, pelo contrário, uma abundância muito apreciada pela pequena comunidade que vivia numa zona desértica.
Nomeado pelo vizir com a aprovação do Faraó, o escriba do Túmulo estava sobrecarregado de trabalho. Competia-lhe velar pela prosperidade da aldeia, preservar um bom entendimento entre os dois chefes de equipa, pagar ao pessoal, manter o Diário do Túmulo, no qual anotava cuidadosamente as ausências e os respectivos motivos, receber o material necessário aos trabalhos e distribuí-lo e continuar a Grande Obra iniciada pelos seus predecessores. Um trabalho assustador que não impedia Kenhir de se entregar à sua distracção favorita: a escrita. Filho adoptivo do ilustre Ramosé elevado à dignidade raríssima de escriba de Maet antes de morrer, Kenhir herdara a sua bela casa, o seu gabinete e, sobretudo, a sua rica biblioteca onde figuravam todos os grandes autores cujas obras copiara com a sua escrita desajeitada e quase ilegível. Amador da poesia épica, compusera uma nova versão de A Batalha de Kadesch que testemunhara a vitória de Ramsés sobre os hititas e da luz sobre as trevas e entregara-se depois a uma reconstituição romanesca da prestigiosa XVIII dinastia. Logo que se reformasse, Kenhir consagrar-se-ia à redacção definitiva de uma Chave dos sonhos, fruto de pesquisas de longo fôlego.
Um artesão procura-vos, avisou Niut a Vigorosa. Não vês que estou ocupado? Quando poderei estar tranquilo nesta aldeia! Quereis vê-lo ou não? Que entre, rosnou Kenhir. Ipui o Examinador, um escultor da equipa da direita, era franzino e nervoso mas de notável habilidade. Sabia domesticar a rocha mais renitente e nunca fazia má cara a um problema difícil. Algum aborrecimento? Um sonho mau, confessou Ipui. Preciso de vos consultar. Conte. Em primeiro lugar, o deus carneiro Khnum apareceu-me e disse: os meus braços protegem-te, confio-te as pedras nascidas do ventre das montanhas para construir templos. Era bastante assustador... Enganas-te, é um excelente presságio. Eincarna em Khnum a energia da criação que constrói os homens e dá aos artesãos a capacidade de dominarem a sua força. E depois! Depois... É mais delicado. Não tenho tempo a perder, Ipu. Ou falas ou vais-te embora. O artesão parecia muito pouco à vontade. Sonhei que fazia amor com uma mulher..., que não era a minha mulher. Muito mau! Uma única solução: mergulha na água fresca de um canal, de madrugada, e ficarás de novo em paz. Mas, diz-me... Porque permaneceste na aldeia em vez de ires trabalhar no Vale dos Reis com o resto da equipa? Levei oferendas ao túmulo do meu pai e a minha mulher está doente.
Kenhir anotou os dois motivos, considerados como válidos, no Diário do Túmulo. Ipui não merecia a terrível designação de preguiçoso que teria arrastado graves sanções. O escriba do Túmulo não deixaria no entanto de verificar as suas palavras, pois já não tinha confiança em ninguém desde que um artesão dera como razão para a sua ausência a morte da tia..., morta pela segunda vez. Logo que o escultor saiu da sala de colunas que servia de gabinete a Kenhir, entrou Didia o Carpinteiro, um homem de elevada estatura e gestos lentos. O chefe de equipa confiou-me um trabalho na oficina, explicou, e pediu-me para vos recordar que os salários deviam ser pagos amanhã de manhã.
O pagamento dos salários... Verificava-se de vinte e oito em vinte e oito dias, inexoravelmente! O escriba do Túmulo e os dois chefes de equipa recebiam cada um cinco sacos de espelta e dois sacos de cevada, enquanto que cada artesão tinha direito a quatro sacos de espelta e um de cevada. A isso juntava-se carne, vestuário e sandálias. De dez em dez dias, Kenhir velava pela distribuição de óleo, unguentos e perfumes; e quotidianamente cada aldeão era gratificado com cinco quilos de pão e de bolos, trezentos gramas de peixe, várias espécies de legumes e frutos, leite e cerveja. Os excedentes permitiam-lhes fazer trocas no mercado». In Christian Jacq, A Pedra da Luz, A Mulher Sábia, 1995(?), Bertrand Brasil, ISBN 978-852-860-772-7.

Cortesia deBertrandB/JDACT