terça-feira, 25 de junho de 2019

As Palavras e as Coisas. Michel Foucault. «Mas pode também ocorrer que a contenda permaneça aberta e que o calmo espelho não reflicta mais que a imagem dos dois soldados irritados»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) No entanto, a emulação não deixa inertes, uma em face da outra, as duas figuras reflectidas que ela opõe. Pode ocorrer a uma ser mais fraca e acolher a forte influência daquela que vem reflectir-se no seu espelho passivo. As estrelas não têm primazia sobre as ervas da terra, das quais são o modelo sem mudança, a forma inalterável e sobre as quais lhes é dado verter secretamente toda a dinastia de suas influências? A terra sombria é o espelho do céu disseminado, mas, nesta contenda, os dois rivais não têm nem o mesmo valor nem a mesma dignidade. As luzes da erva, sem violência, reproduzem a forma pura do céu: as estrelas, diz Crollius, são a matriz de todas as ervas, e cada estrela do céu não é mais que a prefiguração espiritual de uma erva tal como a representa e, assim como cada erva ou planta é uma estrela terrestre olhando o céu, assim também cada estrela é uma planta celeste em forma espiritual, a qual só pela matéria é diferente das terrestres (...), as plantas e as ervas celestes estão viradas para o lado da terra e olham directamente as ervas que elas procriaram, infundindo-lhes alguma virtude particular.
Mas pode também ocorrer que a contenda permaneça aberta e que o calmo espelho não reflicta mais que a imagem dos dois soldados irritados. A similitude torna-se então o combate de uma forma contra outra, ou melhor, de uma mesma forma separada de si pelo peso da matéria ou pela distância dos lugares. O homem de Paracelso é, como o firmamento, constelado de astros; mas não está a ele ligado como o ladrão às galeras, o assassino ao suplício da roda, o peixe ao pescador, a caça ao caçador. Pertence ao firmamento do homem ser livre e poderoso, não obedecer a ordem alguma, não ser regido por nenhuma das outras criaturas. Seu céu interior pode ser autónomo e repousar somente em si mesmo, sob a condição, porém, de que, por sua sabedoria, que é também saber, ele se torne semelhante à ordem do mundo, a retome em si e faça assim equilibrar no seu firmamento interno aquele onde cintilam as estrelas visíveis. Então, essa sabedoria do espelho envolverá, em troca, o mundo onde estava colocada; seu grande elo girará até ao fundo do céu e mais além; o homem descobrirá que contém as estrelas no interior de si mesmo (...), e que assim carrega o firmamento com todas as suas influências.
A emulação apresenta-se de início sob a forma de um simples reflexo, furtivo, longínquo; percorre em silêncio os espaços do mundo. Mas a distância que ela transpõe não é anulada pela sua subtil metáfora; permanece aberta para a visibilidade. E, neste duelo, as duas figuras afrontadas se apossam uma da outra. O semelhante envolve o semelhante, que, por sua vez, o cerca e, talvez, será novamente envolvido por uma duplicação que tem o poder de prosseguir ao infinito. Os elos da emulação não formam uma cadeia como os elementos da conveniência: mas, antes, círculos concêntricos, reflectidos e rivais. Terceira forma da similitude, a analogia. Velho conceito, familiar já à ciência grega e ao pensamento medieval, mas cujo uso se tornou provavelmente diferente. Nessa analogia superpõem-se convenientia e aemulatio. Como esta, assegura o maravilhoso afrontamento das semelhanças através do espaço; mas fala, como aquela, de ajustamentos, de liames e de juntara. Seu poder é imenso, pois as similitudes que executa não são aquelas visíveis, maciças, das próprias coisas; basta serem as semelhanças mais subtis das relações. Assim alijada, pode tramar, a partir de um mesmo ponto, um número indefinido de parentescos. A relação, por exemplo, dos astros com o céu onde cintilam, reencontra-se igualmente: na da erva com a terra, dos seres vivos com o globo onde habitam, dos minerais e dos diamantes com as rochas onde se enterram, dos órgãos dos sentidos com o rosto que animam, das manchas da pele com o corpo que elas marcam secretamente. Uma analogia pode também se voltar sobre si mesma sem ser por isso contestada. A velha analogia da planta com o animal (o vegetal é um animal que se sustenta com a cabeça para baixo, a boca, ou as raízes, entranhada na terra), Césalpin não a critica nem a põe de parte; reforça-a, ao contrário, multiplica-a por ela própria, quando descobre que a planta é um animal de pé, cujos princípios nutritivos sobem de baixo para cima, ao longo de uma haste que se estende como um corpo e se completa por uma cabeça, ramalhete, flores, folhas: relação inversa mas não contraditória com a analogia primeira, que coloca a raiz na parte inferior da planta, a haste na parte superior, pois, nos animais, a rede venosa começa também na parte inferior do ventre e a veia principal sobe para o coração e a cabeça». In Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, 1966, Livraria Martins Fontes Editora, 1981, 2000, ISBN 853-360-997-3.

Cortesia de LMFontesE/JDACT