segunda-feira, 17 de junho de 2019

As Naus. António Lobo Antunes. «As mangueiras e as palhotas de Bissau desapareceram das vigias. Grumetes de camisa às listras marinhavam pelas vergas desfraldando a lona de circo das velas»

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«(…) Um grande paquete claro aproximava-se do cais a ameaçar destruir Bissau com o gume da proa onde uma sereia esculpida, de bacia gigantesca, separava a espuma com a lã doirada do sexo: Não somos de parte alguma agora, respondeu o marido a designar o barco coroado de flâmulas, de emblemas reais, do estandarte do almirante Afonso Albuquerque no topo do mastro principal, custoso de distinguir sobre as cornijas, os guindastes, as gruas e os repuxos de agulhas das palmeiras. Embrulharam a fotografia do casamento e o cofrezinho de cisnes de madrepérola em que se acumulavam recordações milenárias (um anelzito de safira, uma chupeta, medalhinhas de Fátima, um perfil magro de menina), o homem enfiou o dinheiro que sobrava nas meias por lavar, e deitou-se em ceroilas, consciente da chuva que lhe turvava o sono, a pensar no veleiro que os haveria de transportar para a Europa, de cordame bambo sob as nuvens escuras pesadas de adamastores e humidade. Como habitualmente nas últimas noites a esposa permaneceu horas a rebolar as cataratas no quarto lembrando-se dos jacintos do funeral da filha, presa aos ferros da cabeceira pelos tendões dos pulsos manchados pelas sardas da velhice. Não te esqueças da quina de costura, foi a última coisa que o homem lhe ouviu antes de se submergir numa geleia de coma onde flutuavam miragens do passado exumadas das trevas. E na tarde imediata, seca apesar da grafite do céu, acotovelaram a multidão de negros que se amontoava no cais na esperança de barris de peixe ou das consolas e armários que os estivadores desprezassem. Devido à ausência da chuva albatrozes e cegos albinos surgiam das furnas dos vagões para girar sobre as fragatas num rodopio de brados. As pedras do porto luziam de água ou remexiam-se de medusas, e assaltou-os a impressão de distinguir o vizinho barbudo dispersando pretos com a pistola a fim de desimpedir a escada de acesso ao tombadilho, que uma fieira de passageiros tão idosos quanto eles trepava amparada aos corrimãos sebosos. O mar espessava em torno das hélices uma baba que excitava a gula dos cegos e dos pássaros. As mangueiras e as palhotas de Bissau desapareceram das vigias. Grumetes de camisa às listras marinhavam pelas vergas desfraldando a lona de circo das velas. A mulher, no colchão inferior do beliche, apoiava o cotovelo na quina de costura que uma bainha de serapilheira protegia do rescaldo das ondas. Depois de três meses de viagem um solzinho cor de pêssego despontou no meio do granito das nuvens e daí a nada avistaram o contínuo fervedoiro de mercado sírio de Lixboa a pular na distância, muralhas de castelo, fogueiras de judeus, procissões de flagelados, um trânsito simultâneo de carroças de escravos, cruzadores e bicicletas. Senhoras de sorriso inalteravelmente bondoso, com distintivos de metal na lapela, distribuíram-nos por autocarros de pára-brisas de três dioptrias que estacionavam no cais e que seguiram, ao longo das manias dos eléctricos e das demoradas defecações das mulas dos coches, até ao vestíbulo de um hotel de cinco estrelas perto de um liceu conventual e de um renque de acácias moribundas, e a cujo balcão se procedia, à esquina de sofás habitados por finlandeses de calções de praia, à distribuição cantada, de lota de peixe, das suites.
Após cinquenta e três anos num cubículo de Bissau sofrendo mosquitos e cacimbo era-lhes difícil imaginar o ilimitado tabuleiro de damas do chão de mármore, as tapeçarias de hibiscos nas paredes, grooms disfarçados de hussardos das invasões francesas, portas que se descerravam sozinhas no silêncio misterioso das estrelas-do-mar. A cabina espacial do elevador, acostumado a assobiar de leve por órbitas de cometas, depositou-os numa espécie de corredor de basílica com os vãos dos altares laterais numerados a algarismos de prata. Na cama que nos ofereceram, tão grande como os areais de Bolama, focinhos de tubarão navegavam na goma dos lençóis». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.

Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT