quinta-feira, 6 de junho de 2019

Moll Flanders. Daniel Defoe. «Após prolongadas reflexões, pois na verdade eu começava a pensar com muita seriedade na situação, como até então não fizera, resolvi abordar a questão com ele primeiro, e não tardou para que surgisse uma oportunidade»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eu me achava agora numa situação realmente terrível e me arrependi de todo o coração por ter cedido ao irmão mais velho com tanta facilidade, não por um exame de consciência, mas em vista da felicidade de que poderia desfrutar e que agora se tornara impossível; como disse, não tinha grandes escrúpulos de consciência, no entanto não podia pensar em ser amante de um dos irmãos e esposa do outro, e então me ocorreu que o primeiro irmão prometera fazer-me sua esposa quando entrasse na posse da sua herança; daí a pouco voltei a pensar naquilo que por várias vezes já havia pensado, ou seja: ele não me dissera mais uma palavra sobre casar-se comigo depois de me haver conquistado como amante; e na verdade, até aquele momento, e embora tivesse pensado no assunto várias vezes, como já disse, aquilo não havia me causado nenhuma inquietação, já que ele não dava nenhum sinal de diminuir o seu afecto por mim, como também não havia reduzido a sua generosidade; teve o cuidado de me aconselhar a não gastar em roupas nem mesmo uma moedinha do que me dava, nem fazer o menor gasto extraordinário, uma vez que causaria estranheza à família, uma vez que todos sabiam que eu não poderia dar-me a esses luxos com os meus ganhos correntes, mas somente por meio de uma amizade particular, o que logo suscitaria desconfianças.
Não obstante, agora eu me via em sérios apuros e não sabia como proceder, e a principal dificuldade estava em que o irmão mais novo não só me assediava de perto como o fazia de forma que todos notavam: entrava no quarto da mãe ou no das irmãs, sentava-se e dizia mil coisas sobre mim, ou dizia-as a mim directamente, diante deles, se estávamos juntos; a situação tornou-se tão pública que toda a casa falava daquilo, e a mãe censurou-o, e a postura da família para comigo logo se alterou de forma radical, a mãe deixando escapar certas frases, como se pretendesse fazer com que eu largasse a família, ou, em termos claros, pôr-me no olho da rua, ora, eu tinha certeza de que a situação era do conhecimento do irmão mais velho, sendo possível apenas que ele não soubesse, como realmente ninguém mais sabia, que o irmão mais novo me propusera casamento; todavia, como era fácil compreender que a história chegaria mais longe, vi também que era absolutamente necessário que eu falasse sobre aquilo com o irmão mais velho, ou que ele falasse comigo, não sabia o que seria melhor, se eu deveria tomar a iniciativa ou deixar tudo como estava até que ele viesse ter comigo.
Após prolongadas reflexões, pois na verdade eu começava a pensar com muita seriedade na situação, como até então não fizera, resolvi abordar a questão com ele primeiro, e não tardou para que surgisse uma oportunidade, pois logo no dia seguinte o irmão mais novo foi a Londres, por conta de algum negócio, e a família saiu para fazer visitas, e ele, como já sucedera antes e, na verdade, como era seu hábito, veio passar uma ou duas horas com a sra. Betty. Logo que entrou e sentou-se, percebeu com clareza que meu semblante estava alterado e que eu não me portava com a desenvoltura e a simpatia costumeiras; não tardou para que se desse conta de que eu havia chorado, e me perguntou com palavras muito meigas o que acontecera e o que me incomodava; se pudesse, eu teria postergado a explicação, mas não conseguia dissimular, de modo que, depois de resistir por algum tempo a suas insistências para desabafar aquilo que eu tanto ansiava revelar, confessei que de facto me atormentava um facto cuja natureza não podia lhe ocultar, mas ao mesmo tempo não sabia como dizer, que se tratava de algo que, além de me surpreender, deixara-me sobremaneira perplexa, de forma que ignorava qual caminho seguir, a menos que ele me aconselhasse; ele então me disse, com muita ternura, que, fosse o que fosse, eu não devia permitir que aquilo me afligisse, pois ele me protegeria do mundo inteiro». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A Vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT