domingo, 30 de junho de 2019

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco.«Ou talvez não: um termo ligado à Tradição podia da mesma forma ocorrer à mente d’Eles. Por um momento pensei que talvez Eles tivessem entrado no apartamento…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ficheiro: Abu
«(…) Quem tenta penetrar no Rosal dos Filósofos sem possuir a chave, lembra o homem que procura caminhar sem pés. (Michael Maier, Atalanta Fugiens, Oppenheim, De Bry, 1618, emblema XXVII) A descoberto, só havia isto. O resto tinha de procurar nos disquetes do word processor. Estavam dispostos em ordem numérica e pensei que tanto fazia começar pelo primeiro, já que Belbo havia mencionado a senha. Sempre fora cioso dos segredos de Abu. Com efeito, mal premi a máquina, apareceu uma mensagem que me solicitava: tens a senha? Fórmula não imperativa, Belbo era uma pessoa educada. A máquina não colabora, sabe que deve receber a palavra, não a recebe, fecha-se. Como se acaso me dissesse: ouve lá, tudo o que queres saber eu trago aqui na minha pança, mas cava cava, velha toupeira, jamais o encontrarás. Vire-se, disse para mim, gostavas tanto de jogar permutações com Diotallevi, eras o Sam Spade da editora, como disse Jacopo Belbo, trata de encontrar o falcão.
A senha de Abulafia podia ser de sete letras. Quantas permutações de sete letras se poderiam fazer com as vinte e cinco letras do alfabeto, calculando ainda as repetições, pois nada impedia que a palavra fosse cadabra? Existe a fórmula em alguma parte, e o resultado deve dar seis bilhões e pouco. Se tivesse um computador gigante, capaz de encontrar seis bilhões de permutações a um milhão por segundo, teria mesmo assim de comunicar uma por uma a Abulafia, para experimentá-las, e sabia que ele precisava de cerca de dez segundos para perguntar e em seguida checar a password. Logo, sessenta bilhões de segundos. Visto que num ano há pouco mais de trinta e um milhões, digamos trinta para arredondar, o tempo de trabalho seria algo como dois mil anos. Nada mau. Era necessário proceder por conjecturas. Em que palavra poderia ter pensado Belbo? Antes de mais nada, seria uma palavra que tivesse encontrado ao princípio, quando começou a usar a máquina, ou que havia descoberto, e mudado, nos últimos dias, ao se dar conta de que as disquetes continham material explosivo e o jogo, pelo menos para ele, já não era mais um jogo? Seria aliás muito diverso. Melhor optar pela segunda hipótese. Belbo sente-se perseguido pelo Plano, leva o Plano a sério (porquanto assim me havia deixado perceber pelo telefone), e pensa então em algum termo que tem relação com a nossa história.
Ou talvez não: um termo ligado à Tradição podia da mesma forma ocorrer à mente d’Eles. Por um momento pensei que talvez Eles tivessem entrado no apartamento, copiado as disquetes, e naquele instante mesmo estariam provando todas as combinações possíveis em algum sítio remoto. O calculador máximo num castelo dos Cárpatos. Que tolice, admiti comigo, aquilo não era gente de calculador, antes teriam procedido com o Notarikon, a Gematria, a Temurah, tratando as disquetes como se fosse a Torah. E teriam gasto tanto tempo nisto quanto gastaram na redação do Sefer Ietzirah. Contudo, a conjectura não era de desprezar. Se Eles existissem, certamente haveriam de seguir uma inspiração cabalística, e se Belbo estava convencido de que, de facto existiam, possivelmente teria seguido a mesma via. Por desencargo de consciência, tentei com as dez sefirot: Keter, Hokmah, Binah, Hesed, Geburah, Tiferet, Nezah, Hod, Jesod, Malkut, e ainda introduzi a Shekinah de lambujem... Não funcionava, é claro, era a primeira ideia que poderia ocorrer à mente de qualquer um.
Contudo, a palavra devia ser qualquer coisa de óbvio, que vem à mente por força das circunstâncias, pois quando trabalhas num texto, de maneira obsessiva, como devia ter trabalhado Belbo nos últimos dias, não te podes esquivar do universo do discurso em que vives. Seria desumano pensar que ele tivesse enlouquecido por causa do Plano e que lhe viesse à mente apenas, sei lá, Lincoln ou Mombasa. Deveria ser algo relacionado com o Plano. Mas o quê? Busquei identificar-me com os processos mentais de Belbo, que havia escrito fumando compulsivamente, bebendo e olhando à sua volta. Fui à cozinha e despejei o último gole de uísque no último copo limpo que encontrei, voltei para a consola, as costas contra o espaldar, as pernas sobre a mesa, bebendo a curtos goles (não era assim que fazia Sam Spade, ou talvez fosse o Marlowe?) e girando o olhar em torno. Os livros estavam distantes demais e não lhes podia ler os títulos nas lombadas.
Tomei a última gota de uísque, fechei os olhos, reabri-os. Diante de mim a estampa seiscentista. Era uma típica alegoria rosa-cruciana daquele período, tão rico de mensagens em código, destinada aos membros da Fraternidade. Representava evidentemente o Templo dos Rosa-Cruzes, onde aparecia uma torre da qual ascendia uma cúpula, segundo o modelo iconográfico renascentista, cristão e hebraico, no qual o Templo de Jerusalém aparecia reconstruído segundo o modelo da Mesquita de Omar». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Sisidea/Difel/JDACT