segunda-feira, 17 de junho de 2019

A Insustentável Leveza do Ser. Milan Kundera. «Se Tomas não hesitara sequer um minuto em recusar a oferta do médico suíço fora por causa de Tereza»

jdact e wikipedia

O peso e a leveza
«(…) Para lhe minorar o sofrimento, casou-se com ela (puderam finalmente desistir do estúdio alugado onde Tereza já não vivia há muito) e arranjou-lhe um cachorrinho. Era filho de uma cadela são-bernardo de um colega de Tomas e do pastor-alemão do vizinho. Ninguém queria os rafeiros e o seu colega sentia as entranhas revolverem-se-lhe só de pensar em matá-los. Tomas tinha de escolher um cachorro e sabia que os que não escolhesse seriam abatidos. Estava na mesma situação que um presidente da República quando há quatro condenados à morte e só pode agraciar um. Acabou por escolher um cachorro, uma fêmea, que parecia ter o corpo do pastor-alemão e cuja cabeça fazia lembrar a do são-bernardo. Levou-o à Tereza. Esta pegou nele ao colo, apertou-o contra os seios e o bicho fez-lhe imediatamente xixi na blusa. Depois, tiveram de baptizá-lo. Tomas queria que, pelo nome, se ficasse logo a saber que o cão era de Tereza e lembrou-se do livro que ela trazia debaixo do braço no dia em que viera a Praga sem prevenir. Propôs que lhe chamassem Tolstoi. Não lhe podemos chamar Tolstoi, replicou Tereza, porque é uma menina. Vamos mas é chamar-lhe Ana Karenina.
Não lhe podemos chamar Ana Karenina, uma fuçazinha assim tão engraçada não é de mulher, disse Tomas. Karenine, sim. É isso mesmo. Foi sempre assim que o imaginei. Mas não achas que se se chamar Karenine pode ficar com a vida sexual perturbada? Não é de todo impossível que uma cadela que se habitue a responder por um nome de cão venha a ter tendências lésbicas... O mais curioso é que a previsão de Tomas veio a confirmar-se. As cadelas gostam normalmente mais do dono que da dona, mas, com Karenine, passava-se precisamente o contrário. Resolveu apaixonar-se por Tereza e Tomas estava-lhe reconhecido por isso. Fazia-lhe festas na cabeça e dizia-lhe: tens razão, Karenine, era exactamente isso que eu esperava de ti. Já que não consigo sozinho, tu tens de me ajudar. Mas, mesmo com a ajuda de Karenine, não conseguiu fazê-la feliz. Foi o que percebeu uns dez dias depois da ocupação do país pelos tanques russos. Estava-se em Agosto de 1968 e o director de uma clínica de Zurique, que conhecera num colóquio internacional, todos os dias lhe telefonava da Suíça. Temia que lhe acontecesse qualquer coisa de mal e punha um lugar à sua disposição.

Se Tomas não hesitara sequer um minuto em recusar a oferta do médico suíço fora por causa de Tereza. Pensava que ela não devia querer ir-se embora. Aliás, Tereza passou os sete primeiros dias da ocupação numa espécie de transe que quase se assemelhava à felicidade. Andava sempre na rua com a máquina fotográfica e distribuía os seus negativos por jornalistas estrangeiros que se disputavam entre si para os obter. Num dia em que fora um pouco longe demais e fotografara de perto um oficial a apontar a pistola às pessoas que iam numa manifestação, apreenderam-lhe a máquina e obrigaram-na a passar a noite no quartel-general russo. Ameaçaram-na com o pelotão de fuzilamento, mas, assim que se viu em liberdade, voltou a ir para a rua tirar fotografias.
Assim, qual não foi a surpresa de Tomas quando, no décimo dia da ocupação, ela lhe perguntou: ora diz-me, no fundo, porque é que tu não queres ir para a Suíça? E porque é  que havia de ir? Aqui têm contas a ajustar contigo... Com quem é que não têm?, replicou Tomas, fazendo um gesto de resignação. Mas, e tu: eras capaz de viver no estrangeiro? E por que não? Depois de te ter visto pronta a dar a vida por este país, não percebo como é que agora te podias ir embora?! Desde que Dubcek voltou, tudo mudou, disse Tereza». In Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, 1983, Publicações dom Quixote, 2013, ISBN 978-972-200-002-4.

Cortesia PdonQuixote/JDACT