sábado, 29 de junho de 2019

A Sádica Nostalgia das fogueiras do Santo Ofício (maldito): o processo judicial contra a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Francisco Topa «A contestação mais interessante à primeira acusação é a de Mário Cesariny Vasconcelos, provavelmente elaborada pelo seu advogado, Fernando Luso Soares»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Os termos do libelo são idênticos, mantendo-se também os 29 exemplos, a que se juntam contudo outros 13, todos da autoria de algum dos arguidos: um é retirado de um texto de Luiz Pacheco, nove pertencem a Ary dos Santos, ao passo que os restantes três são de Melo e Castro. Percebe-se o objectivo de tentar implicar mais diretamente cada um dos acusados, o que é confirmado pela natureza diferente destes trechos: embora às vezes esteja em causa uma linguagem crua e o recurso ao palavrão, parece, sobretudo nos casos de Luiz Pacheco e Ary dos Santos, que é o alcance sociopolítico e o efeito iconoclasta que é objecto de reparo e de tentativa de criminalização. Vejam-se os seguintes dois exemplos (f. 232), um de cada autor:

«Assim termina o lamento
Pois recordar é sofrer
Ama e fo… É bom sustento!
E por nós reza um bater».

«O Cordeiro de Deus foi assado no espeto
Extraíram-lhe o bedum…, esfregaram-no com sal
Comeram-lhe os col…. Deixaram-lhe o esqueleto
Tiraram-lhe o retrato para pôr num missal»

A acusação acrescenta que O livro em questão foi vendido publicamente, a mais de seis pessoas e que Foram apreendidos 37 exemplares do mesmo. É escusado sublinhar que, noutro contexto, ambos os números teriam sido certamente considerados ridículos e insuficientes para justificar os crimes que estavam em causa. O quinto aspecto menos conhecido do processo tem a ver com os argumentos usados pela defesa, e é talvez o mais interessante. Parte dos argumentos é previsível e passa pelo acentuar da validade e do interesse deste tipo de poesia e pela negação da intenção de ofender a moral pública. Natália Correia, nas declarações que presta na Polícia Judiciária a 18-1-1966, invoca os precedentes abertos por Carolina Michäelis Vasconcelos [como já fizera no prefácio] e nos nossos dias por Elsa Pacheco Machado e do Doutor Rodrigues Lapa, que publicaram respectivamente, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional e as Cantigas de Escarno e Maldizer, colecções essas de nível universitário que são vendidos (sic) abertamente nas nossas livrarias e nas quais se encontram algumas das produções que vêm na Antologia referida nos autos e cuja terminologia é pelo menos tão violenta como a da presente Antologia, se não for mais. Na contestação à primeira acusação, afirma, ela ou o seu advogado, Manuel João Palma Carlos, de modo contundente, numa retomada dos argumentos habitualmente usados pelas vítimas de processos deste tipo. Um dos elementos interessantes apresentados por Natália Correia é uma carta do poeta Eugénio Andrade, em que este uma nota de gratidão.
A contestação mais interessante à primeira acusação é a de Mário Cesariny Vasconcelos, provavelmente elaborada pelo seu advogado, Fernando Luso Soares. Para além da sólida fundamentação jurídica, o autor discute com finura a natureza da sátira e do erotismo e recorre a argumentos emblemáticos da histórica literária. A dada altura cita dois casos de reacção judicial contra escritores: Dostoievski, que foi acusado de se ter compadecido do destino miserável dos camponeses que se encontravam reduzidos à condição de escravos». In Francisco José Jesus Topa, A Sádica Nostalgia das fogueiras do Santo Ofício: o processo judicial contra a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, Revista Historiae, Universidade do Porto, Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, Espólio de Natália Correia, Torre do Tombo, Tribunal de Comarca de Lisboa, 4.º Juízo Criminal, 2015.

Cortesia de RHistoriae/UdoPorto/TorredoTombo/JDACT