sexta-feira, 28 de junho de 2019

Um País Encantado. Luís Miguel Rocha. «Já vai o coronel no corredor, à espera da cigarrilha matinal que lhe vai fazendo falta. Entra no salão de leitura, sabem-lhe bem estes minutos que antecedem a graciosa deleitação do fumo»

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«O importante não é aquilo que fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós». In Jean.Paul Sartre

«(…) Por aqui o meu coronel?, estranha Gracinda, a mais velha das serviçais da casa, que já servia os antigos donos antes do coronel montar praça nela, na casa, ou no solar como lhe quiserem chamar. Precisa de alguma coisa? Não obrigado, Gracinda, só vim esticar as pernas. A senhora já acordou? Ainda não, coitadinha, diz Conceição Genoveva com cara de enfado a juntar ao esforço da partição do fiel amigo. Precisa de descansar. Assim será. E sai o Coronel da cozinha pela parte de dentro para ir à sua vida, não sem antes desejar um bom dia às duas das quatro serviçais da casa. À Gracinda, cozinheira, e à Conceição Genoveva, das tarefas múltiplas e esposa do mordomo Alfredo. As outras estão nos seus afazeres com certeza, a Laurinda, da lida  da casa, quartos, camas, salas e salões, pó e afins, menos a roupa, porque essa fica para a Conceição Genoveva que vai todas as sextas-feiras ao tanque público lavá-la quando não chove e saber das novas da terra ou, nos dias maus, ao tanque interno. A roupa de todos sem diferença de classes, mas sem misturas de cores para não dar caso. E a Rosa, que as há em todo o lado no nosso querido Portugal, a que trata das miúdas, todas, trabalho imperioso e de grande responsabilidade.
Já vai o coronel no corredor, à espera da cigarrilha matinal que lhe vai fazendo falta. Entra no salão de leitura, sabem-lhe bem estes minutos que antecedem a graciosa deleitação do fumo. Que maravilha esta que nós ternos, a de saborear mais os preliminares do que o prazer em si mesmo. Já a acendeu, já a contempla nos dedos e recosta-se no cadeirão. Mira a porta da sala de convívio aberta e Laurinda, do outro lado com o pano de limpar o pó apoiado numa mesinha pequena, numa esfregação com Alfredo, o mordomo. Este, por detrás dela que limpa o pó, murmúrio, gemido, respiração cavalar. E Alfredo roça que roça para trás e para a frente por detrás de Laurinda, de saias levantadas sobre as costas para dar arejo às apudoradas partes, despudoradas agora, e espaço ao membro másculo que balança enérgico em movimentos persistentes. Que rijeza, que tes… este, dos dois, não pensam em pecado nesta hora, isso fica para mais tarde, que coisa chamarmos a consciência honesta e verdadeira para esta sala onde estes dois se comem e enrijam os sentimentos físicos do coronel que, na outra sala, ainda espreita pela porta com o sublime desejo cada vez mais
inflamado. Ele é testemunha e não mirone destes que fod… um com o outro, ele mordomo casado, mas não com ela, mulher da limpeza, do pó, que abana o pano com todo o vigor, casada com o motorista da casa, o Adelino, que ainda há pouco trouxe o coronel do cemitério e agora tira a lama do lado de fora do veículo porque dentro está reluzente, ou não fosse essa também a sua função, a de cuidar do bem-estar da viatura, enquanto a esposa limpa o pó e dá polimento aos móveis que ficarão gastos de tanto limpar no mesmo sítio e com tanto viço. O coronel já tem um alto no cimo das calças enquanto ainda aprecia o espectáculo. A posição mudou, ele sentado no sofá e ela por cima dele, como que a montar um jumento qualquer e a saltar, a saltar, a saltar, tanto arrebatamento, nenhuma afeição, só carne com carne a eliminar o desejo como quer o coronel, e salta que salta, salta que salta, salta que salta, até se vê a cueca que foi enfiada de manhã e não foi tirada, só empurrada para o lado, grande desvario este, não têm eles medo que alguém entre ou que alguém veja? Não, ora essa, quem é que entraria e quem é que veria, nada disso, e o que importa é aliviar a tensão e cortar o tes… Está quase, é bem doida esta Laurinda, pensa o coronel, que nunca a tinha olhado com olhos de ver e agora que enxerga alimenta ideias. Mas que é isto que ela faz? Por esta é que não esperava, tal coisa nunca tinha pensado, dela que agora deglute o agregado do mordomo. Que visão, que loucura mais interessante vem a ser esta, que Laurinda tão ágil ali em reverência com aquilo do mordomo, ele que já geme de prazer manado e ela a continuar sem bulício em movimentos maquinais até que Alfredo pára de gemer e o coronel descansa também do vislumbre a que assistiu de uma técnica mais avançada do que ele pode supor e que os subservientes dominam e ele não. Arrumam-se os dois do pouco que desajeitaram, tudo o resto está imaculado, nem pingo de obscenidade, pudera, é tão bom quando tudo corre bem, estas depravações só são boas com os de fora, isto que nem é pecado quando os cônjuges não compensam nessas artes. O que está feito, feito está, e o nosso coronel já saiu do salão de leitura, ele que nem saboreou a cigarrilha, mas algo bem melhor do que isso. O pecado é galante e saboroso, mesmo o dos outros que não os dele, e já vai pelo corredor a ver a filha mais nova, que se lembrou agora dela». In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.

Cortesia de PlanetaE/JDACT