sábado, 29 de junho de 2019

Um País Encantado. Luís Miguel Rocha. «… um pouco das duas se combina agora vinda de quem vem, ela saberá qual lhe toca quando chegar à hora de deliberar, deixemo-la dormir ora e a todos os que de nós invejarem»

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«O importante não é aquilo que fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós». In Jean.Paul Sartre

«(…) Os outros voltam às limpezas, bem mais limpos estão dos desejos mundanos, mas não dos da alma, isso só a eles importa e se não se apoquentam eles muito menos o faremos nós. Continua a limpar o pó Laurinda enquanto Alfredo segue pelo corredor, em direcção à cozinha, ver a sua Conceição Genoveva. Sente súbitas saudades da sua gorda, mãe do seu único filho, que ainda só seis meses tem. Laurinda é bem mais nova, mais fresca, como se viu, e mais magra, com uma grande abertura de ideias mas com os mesmos ideais porque é o que espera quem nasce desventurado e sem refúgio, ficar-se burro de instrução até ao fim da vida ou subir à custa de ardis para saciar mais os bolsos, porque se há coisa que todos fazemos é abafar o tes…, uns mais do que outros, mas todos alguma coisa. Assim seja para quem puder, só alguns, poucos, sairão da sumidouro rumo ao píncaro, a maior porção ficará pelo trabalhos duros que os abastados não fazem porque têm dinheiro para pagar, pouco, ao burro pobre que dele precisa para pôr comida na boca dele e da família. Estes que aqui trabalham nem se podem chorar, não ganham moedas mas comem e bebem à discrição, dormem em bons colchões e não é trabalho que mate e ainda têm direito a alívios destes, como vimos mas não vamos dizer a vivalma ou então que atire a primeira pedra, como disse Jesus Cristo noutras circunstâncias parecidas, o que de nós nunca o fez. Poucas ou nenhumas se atirariam porque todos gostamos do mesmo e de andar por fora a debicar e a fazer modernas experimentações como as que viu o coronel há pouco e que pensava ser impossível no ramo da reprodução. Somos testemunhas e não mirones e não falaremos mais disto.
Mariana Silveira ainda não se preocupa com estas coisas, mais importante é despicar, formosa e fresca, medrar para a vida sem problemas de saúde, ela que dorme ainda na alcofa, serena e amansada como a está a ver o pai e Josefina, que ainda não saiu de cerca dela desde que acordou pela manhã, muito antes das outras, que ainda dormem. Não tens escola hoje?, pergunta o pai a lembrar-se das horas. Hoje é sábado, pai. Tens razão, ando perdido. Gostas da tua irmãzinha? Muito. Vou-lhe ensinar tudo o que sei. E já sabes muito? Sei que chegue. É danada esta, pensa o coronel, gosta de resposta na ponta da língua, sai a ele esta Josefina, ou talvez não, é mesmo a cara e o carácter da tia que lhe deu o nome, a sua cunhada, espevitada e frontal porque não adianta mandar dizer por outro aquilo que tem de sair de nós. As tuas irmãs, já acordaram? Vou ver. Já é hora de arribarem.
Sai Josefina rumo ao quarto dela e das outras que ainda não as vimos mas havemos de ver, o tempo sobeja para onde vamos e muitos anos para confiar a todos os que de nós se interessem por esses factos. Com tanta algaraviada nem demos pelo acordar de dona Margarida, que já atenta no cenário. Coisa como esta nunca viu, o seu coronel a apreciar sua filha Mariana Silveira logo na manhã do nascimento. Com as outras a nada disto se assistiu, ficou semanas fora do lar a curar a ira, que estranheza esta que passa desde esta noite a mudar-lhe o esposo para melhor. Bom-dia, senhor meu marido. Bons-dias para si também. Deixou-a dormir bem? Muito bem. Não chorou um segundo. Prezo por si. Esta noite dormirei consigo se já não houver problema. Nunca houve senhor meu marido, mas estimo que me tenha deixado descansar esta noite. Claro que pode dormir, mas dada a minha situação sabe que nada poderá... Bem sei quanto a isso tudo o que há a saber. Não a molestarei nesse aspecto. Vou agora ao quartel ver como se apresentam as coisas. Só mais uma coisa senhor meu marido. Dizei. Fiz promessa à Virgem de lá ir acender umas velas se tudo corresse pelo melhor. À Virgem de Fátima? Sim, meu senhor, prometi lá ir no treze de Maio. Prometeu que eu iria?
Claro que não, senhor meu marido. Prometo só por mim para não enfastiar outros, mas posso ir só com o Albino e as crianças. Nada disso, eu a acompanharei e às crianças no dia treze. Descansai agora. Agradeço-lhe, senhor meu. Um beijo dá na boca de sua amorável esposa, a imaginar outras coisas que lhe ornam a lembrança, e sai do quarto. Este homem está maluco, pensa dona Margarida, acometida em pensamentos toscos de imaginação cheia. Não se imagine mais porque a causa está neste quarto, naquela alcofa a dormir, a futura dona que dobrou o despiedoso coronel à nascença, neste dia três de Abril do ano que todos sabemos, muitos mais virão adiante deste, pois que venham, das horas dos dias se faz a história e nascem os heróis depois dos vilões porque para haver herói tem de existir vilão primeiro ou não seriam necessários actos heróicos. À frente se verá de que é feita esta Mariana Silveira, se de matéria vil ou varonil, um pouco das duas se combina agora vinda de quem vem, ela saberá qual lhe toca quando chegar à hora de deliberar, deixemo-la dormir ora e a todos os que de nós invejarem». In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.

Cortesia de PlanetaE/JDACT