domingo, 30 de junho de 2019

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Em abono da verdade, deve dizer-se que este Adónis do sul da Europa passou um pouco ao lado a Sarah. Porém, o italiano cedo mostrou um interesse genuíno e uma conversa agradável»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Nunca lhe havia passado pela cabeça que se podia ter precipitado até ao momento em que o disse. Rafael podia, simplesmente, não sentir nada por ela. E o facto de o ver dar mais um gole na cerveja, sem proferir uma palavra, fazia-a sentir cada vez mais pequena, como uma menina que confessara o seu amor e levara a primeira tampa. Não verbal, neste caso, o que ainda custava mais. Teria Sarah compreendido tudo mal? Teria, deliberadamente, deturpado os sinais? Nem pensar. Era inteligente, bem-sucedida, editora de política internacional do The Times, autora de dois livros conceituados. Teria sido iludida pelos sentimentos? Agora era tarde, não podia fazer nada. Revelara-se. Tinha de se manter firme. Até ao fim. Não dizes nada, Rafael? Mais um gole de cerveja. Deixas-me dizer isto tudo e não dizes nada? Não me paras? Não me colocas no meu devido lugar?
Rafael bem queria falar, e falou, mas Sarah já não o ouviu. Saíra esbaforida depois de ter batido uma nota de dez libras em cima da mesa, para pagar a Evian que mal bebera. Ainda bem que tivemos esta convers, declarou Sarah. Agora posso prosseguir com a minha vida e arrumar o que ficou pendente. E saiu a toda a velocidade, enfurecida. Estava no seu direito de se sentir exasperada. Se tivesse aguardado mais alguns instantes, se não tivesse avançado para a porta tão ligeira, para longe do bar, para longe de Rafael, se, se, se..., provavelmente, tê-lo-ia ouvido. Um tímido e sumido Não posso. A prestigiada editora de política internacional do The Times depressa encontrou razões para esquecer o padre Rafael Santini que regressara a Roma. E se, não raras vezes, relembrava aquela conversa de surdos que teve naquele bar em Whitehall enquanto o Chelsea jogava contra outra equipa qualquer, o mesmo Deus em que Rafael cria, ou outro qualquer, abriu-lhe uma janela, na forma de um Deus italiano. Mais um. Era achacada a italianos, pelos vistos. Correspondente do Corriere della Sera em Londres, com aparições regulares na RAI, os mesmos 32 anos de Sarah, um corpo que faria Eros atirar-se do pedestal roído de inveja, David automutilar-se em desespero. Só teve olhos para ela, a partir do primeiro milésimo de segundo em que a viu, num jantar para jornalistas, na Embaixada de Itália.
Em abono da verdade, deve dizer-se que este Adónis do sul da Europa passou um pouco ao lado a Sarah. Porém, o italiano cedo mostrou um interesse genuíno e uma conversa agradável que ia muito além do playboy que aparentava ser. Natural de Ascoli, na província de Marcas, junto ao Adriático, chamava-se Francesco. Não valia a pena o mentir, a sua beleza escultórica fora a carta que mais pesara para Sarah concordar num encontro a dois. A oportunidade de Francesco mostrar o que valia e se valia a pena. Depois desse primeiro encontro veio o segundo, na semana seguinte, depois de uma semana doida na redacção de Sarah. No terceiro, ficou selado o compromisso com um aceso beijo junto à porta de casa dela, em Kensington, a que se seguiram muitos outros de maior intensidade na cama do quarto dela». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT