quarta-feira, 12 de junho de 2019

Memória de Elefante. António Lobo Antunes. «O robot de puxar lustro é bom na cama?, perguntou à enfermeira que regressava sem smarties, empunhando o tabuleiro vazio desprovido do encanto trémulo das pastilhas»

jdact e wikipedia

«(…) Tem as nádegas cheias de caroços das injecções, defendeu o médico. Que lhe posso fazer? Além disso a senhora não acha poética a ideia do seu sangue derramado? Um fim à César, que mais quer? E acrescentou num sussurro de confidência: que pensa a chefe das mortes violentas? Talvez dêem o seu nome a uma ala do hospital: no fim de contas o Miguel Bombarda finou-se de um tiro. De longe a Nélia enviou-lhes o mais obsceno gesto do seu mostruário elementar de colégio de freiras: alguns dos jornais caíram-lhe das mãos perto de uma empregada que encerava o soalho tripulando uma maquineta prima de um cortador de relva esquemático, a qual devorou incontinenti as notícias num apetite ronronante de jibóia, tossiu três ou quatro vezes, soluçou, e imobilizou-se de encontro à parede numa agonia espectacular de king-kong cinematográfico. O Napoleão precipitou-se a chinelar para ela como para um filho doente: o psiquiatra calculou que fosse tentar, desesperada, a respiração boca-a-buraco, e voltou as costas enfastiado por esse acto de amor contranatura.
O robot de puxar lustro é bom na cama?, perguntou à enfermeira que regressava sem smarties, empunhando o tabuleiro vazio desprovido do encanto trémulo das pastilhas. Quanto mais se conhecem os homens mais se apreciam os electrodomésticos, respondeu ela. Eu vivo maritalmente com um fogão de dois bicos e somos felizes. Só é pena o pulmão de aço da botija de gazcidla. Num asilo de malucos onde estão os malucos?, insistiu o médico. Porque nos arrastamos aqui, nós os que ainda possuímos licença de saída diária, se todas as semanas há um barco para a Austrália e existem boomerangs que não regressam ao ponto de partida? Eu sou velha demais e você demasiado novo, explicou a enfermeira. E os boomerangs acabam sempre por voltar nem que seja em bicos de pés, à noite, num assobiozinho envergonhado.
Voltar, pensou o psiquiatra repetindo a palavra num vagar de camponês que enrolasse mortalha pensativa na tarde de um campo de trigo, voltar, abrir a porta com a simplicidade literária do Suave Milagre e informar sorrindo, estou aqui? Voltar como um tio da América, um filho do Brasil, um miraculado de Fátima de vitoriosas muletas ao ombro, iluminado ainda pela visão de uma quiromante celeste manejando hábeis truques bíblicos no palco de uma azinheira? Voltar como voltara anos atrás da guerra de África, às seis da manhã, para um mês de felicidade furtiva numa mansarda oblíqua, a certificar-se rua a rua, no táxi, de que nada mudara na sua ausência, país a preto e branco de muros caiados e de viúvas de negro, de estátuas de regicidas a levantarem braços carbonários em praças habitadas, em doses equitativas, de reformados e de pombos, uns e outros esquecidos já da alegria de um voo? A sensação de haver perdido a chave embora a conservasse no porta-luvas do automóvel entre papéis manchados de óleo e tubos de comprimidos para dormir fê-lo experimentar a angústia sem amarras da solidão absoluta: algo que desconhecia e lhe entortava os gestos impedia-o de marcar o número que se seguia ao seu nome na lista telefónica e pedir socorro à mulher que amava e o amava. A crueldade dessa impotência subiu-lhe aos olhos num nevoeiro de ácido difícil de reprimir como a turbulência de um arroto. Os dedos da enfermeira vieram tocar-lhe de leve o cotovelo: se calhar, disse ela, sempre é capaz de haver boomerangs que não regressam. E conseguem manter-se à tona mesmo assim. E pareceu ao psiquiatra que acabava de receber uma espécie de extrema-unção definitiva». In António Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1979, 1983, Publicações dom Quixote, BIS, Grupo Leya, 1983, ISBN 978-989-660-091-4.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT