terça-feira, 4 de junho de 2019

A Ronda da Noite. Agustina Bessa Luís. «Tem frio, avó?, perguntou. Não, só um pouco de fome. Mas, espera: não é fome, talvez não seja. A morte é excitante. Esta gente toda vai comer demais e enrolar-se na cama com peúgas e tudo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Dia de Finados
«(…) Martinho apertou, sem querer, o braço da avó ao ter diante dos olhos a pesada pedra do túmulo. Era de facto terrível, com as argolas de ferro enferrujadas e o musgo negro que a cobria. Não vou deixar que a metam aqui, pensou, desolado. E um toque de pó-de-arroz na face dela, junto à orelha esquerda, enterneceu-o como o rasto duma mulher bonita. Até ao fim somos amantes uns dos outros, pensou, triste. A educação de mulheres dera-lhe um descaramento ritual, sem nada de perverso, só amadurecido pela reflexão. Deteve-se a olhar para as campas cobertas de inscrições saudosas, de flores caras, de candeeiros vermelhos dentro dos quais uma chama curta ia sucumbindo. A morte tinha-se tornado uma vaidade mais, uma festa de anos em que só faltava o parabéns a você mas não a mesa abundante.
Tem frio, avó?, perguntou. Não, só um pouco de fome. Mas, espera: não é fome, talvez não seja. A morte é excitante. Esta gente toda vai comer demais e enrolar-se na cama com peúgas e tudo. Não se devem frequentar lugares destes na minha idade. São lúbricos e quase mal-afamados. Um dente dela abanava quando ela falava, e Martinho podia distinguir um ligeiro ciciar da voz que dantes não tinha. Pronto, a velhice está a bater-lhe à porta. Não vamos pensar nisso, não quero pensar nisso. Pronto, acabou, pensamentos vagabundos! Beijou-a, a rir-se, e notou que os cabelos dela tinham um cheiro de ferro frisado. Os cabelos. De repente as mulheres puseram-se a usar franja e Nietzsche disse que era para esconder a testa e o que ela presume: inteligência, independência de vida, sexo, gerência dos negócios e outras coisas. Por mais que olhasse para todos os lados, as mulheres não pareciam diferentes. Quer dizer: talvez se adaptassem com mais dificuldade a um destino de donas de casa e mães de cinco filhos ranhosos e impertinentes. A verdade estava à vista, a crueldade era uma forma de razão prática, mas isso sempre existira entre as mulheres e os homens também. Só uma educação muito rígida as controlava. Casavam-se por amor, mas o amor incluía tudo o que se pode imaginar como na história do Humpty Dumpty. Cascas de ostras e peles de raposa ou daquelas águas de Colónia estafadas cujos frascos eram sempre uma ralação pois não pertenciam a nenhum lugar: nem ao lixo nem a uma colecção, nem para encher outra vez. Paula Nabasco disse que outra vez que lhe dessem um frasco desses, o mandava de volta de presente para outra pessoa. Eu, só gosto de lavanda. Mas quando fiquei grávida do Martinho enjoei a lavanda e nunca mais a pude suportar. Isto deve ter um sentido, não sei.
Paula penteava os compridos cabelos pretos. Tão pretos quanto podiam ser, com reflexos metálicos. Há coisas que se lêem nos livros mas que, nem por isso, deixam de ser assim. Negro-asa de corvo existia. Eram os cabelos de Paula. Aí está uma coisa que não se desfaz depressa. O cabelo, pensou Martinho. Pôs-se a olhar para a cabeça das pessoas que enchiam o cemitério e ficou desconcertado. Pareciam todas como as dos condenados à guilhotina ou ao machado, pontas cortadas ao acaso segundo o critério do barbeiro da prisão. Os pensamentos dele voaram noutra direcção, conduzidos por uma curiosidade que o fazia memorizar os momentos menos interessantes da vida. Coisas de que ninguém se lembrava saíam da memória como ratos dum queijo gigantesco. Era uma ideia tola mas divertida como as crianças costumam gostar». In Agustina Bessa Luís, A Ronda da Noite, Guimarães Editores, 2006, ISBN 972-665-513-7, Relógio d'Água, 2017, ISBN 978-989-641-811-3.

Cortesia de GuimarãesE/Rd’Água/JDACT