segunda-feira, 17 de junho de 2019

Memória de Elefante. António Lobo Antunes. «Aproveitando a protecção de dois polícias que escoltavam um velhote digno com cara de ajudante de notário embrulhado nas lonas confusas de uma camisola de forças…»

jdact e wikipedia

«(…) Ao descer as escadas para o Banco distinguiu ao longe, perto da penumbra de sacristia a cheirar a verniz de unhas do gabinete das assistentes sociais, criaturas feias e tristes a necessitarem elas próprias de assistência urgente, um grupo de delegados de propaganda médica estrategicamente ocultos nas ombreiras das portas vizinhas, prontos a assaltarem de enxurradas palavrosas e por vezes letais os esculápios desprevenidos ao alcance, vítimas inocentes da sua simpatia impositiva. O psiquiatra aparentava-os aos vendedores de automóveis na loquacidade demasiado delicada e bem vestida, irmãos bastardos que se haviam desviado, na sequência de um obscuro acidente cromossómico de percurso, da linhagem dos faróis de iodo para as pomadas contra o reumático, sem contudo perderem a incansável vivacidade solícita original. Espantava-o que aqueles seres debitantes, sempre-em-pés da boa educação, donos de pastas obesas que continham dentro de si o segredo capaz de transformar corcundas raquíticas em campeões de triplo salto, lhe dedicassem em chusma atenções de Reis Magos portadores de preciosas ofertas de calendários de plástico a favor dos preservativos anti-sífilis Donald, o inimigo público número um dos aumentos demográficos, suave ao tacto e com uma coroa de pelinhos afrodisíacos na base, de jogos de xadrez em cartolina gabando discretamente em todas as casas os méritos do xarope para a memória Einstein (três sabores: morango, ananás e bife de lombo), e de pastilhas efervescentes que rolhavam as diarreias mas soltavam as rédeas da azia, obrigando os doentes dos intestinos a preocuparem-se com as fervuras do estômago, manobra de diversão com que lucravam os quartos de água das Pedras bebidos a pequeninos goles terapêuticos nos balcões das pastelarias. Os doutores saíam-lhes das pinças ferozes a cambalearem sob o peso de folhetos e de amostras, tontos de discursos eriçados de fórmulas químicas, de posologias e de efeitos secundários, e vários tombavam exaustos trinta ou quarenta metros percorridos, espalhando em redor os perdigotos de pílulas do último suspiro. Um empregado indiferente varria-lhes os restos clínicos para a vala comum de um balde de lixo amolgado, resmungando baladas fúnebres de coveiro.
Aproveitando a protecção de dois polícias que escoltavam um velhote digno com cara de ajudante de notário embrulhado nas lonas confusas de uma camisola de forças, o médico atravessou a salvo o bando ameaçador dos propagandistas a aliciá-lo com o canto de sereia dos sorrisos uníssonos, desdobrados como acordeões nas bochechas obsequiosas: uma manhã destas, pensou, afogam-me num frasco de suspensão antibiótica amigdal do mesmo modo que o meu pai possuía, nunca entendi porquê, guardado no armário da estante, o troféu de caça do cadáver de uma escolopendra num tubo de álcool, e vender-me-ão à Faculdade, encarquilhado como um aborto, para figurar no mostruário de horrores do Instituto de Anatomia, talho científico atravessado de Castelo Fantasma, com esqueletos pendurados de ferros verticais à maneira de craveiros murchos a ampararem o seu desânimo a pedaços de cana, olhando-se uns aos outros com órbitas vazias de militares na reserva.
A coberto das damas de honor do ajudante de notário, cujos bigodes tremiam de timidez autoritária, o psiquiatra ultrapassou ileso um internado alcoólico das suas relações que todas as manhãs teimava em narrar-lhe por miúdo intermináveis disputas conjugais em que os argumentos eram substituídos por animadíssimas batalhas campais de caçarolas (Chiça pá dei-lhe uma azevia no alto da piolhosa, doutorzeco de uma cana, que me ficou oito dias a cuspir brilhantina), uma senhora magrinha da secretaria que vivia no pânico do esperma do marido e usava interrogá-lo ansiosamente acerca da eficácia comparativa de duzentos e vinte e sete anticoncepcionais diferentes, e um doente de barbas bíblicas de neptuno de lago que nutria por ele uma admiração entusiástica feita de panegíricos vociferantes, todos mantidos a respeitosa distância pelas aias da camisola de forças, comunicando ao ouvido peludo um do outro os respectivos hálitos de alho». In António Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1979, 1983, Publicações dom Quixote, BIS, Grupo Leya, 1983, ISBN 978-989-660-091-4.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT