quinta-feira, 11 de junho de 2020

A Caminho de Jerusalém. Jan Guillou. «Em muitos a pele era enrugada no rosto e no pescoço. Para eles, as coisas não eram muito fáceis em Lurõ, qualquer um podia ver isso…»

Cortesia de wikipedia jdact

«(…) O rei, primeiro, pareceu ficar surpreso. Ele mal estava acostumado a que os homens à sua volta falassem com ele directo e sem os cerimoniosos rodeios habituais. Muito menos as mulheres. Você é uma mulher abençoada em muitos aspectos, minha cara Sigrid, disse ele, finalmente, com palavras lentas e pegando de novo a mão dela. Amanhã, quando já tivermos dormido no castelo depois do banquete de hoje, irei chamar o padre Henri e aí vamos resolver toda essa história. Amanhã, mas não hoje. Também não ficará bem continuarmos aqui nós dois, sentados durante muito mais tempo a sussurrar. De um momento para o outro, ela tinha feito a dádiva da sua herança, Varnhem. Nenhum homem, nenhuma mulher, poderia quebrar a sua palavra diante do próprio rei, assim como o rei jamais poderia quebrar a sua palavra. Aquilo que ela fizera ninguém jamais poderia desfazer.
Mas foi também uma atitude prática, entendeu ela, quando se recuperou um pouco. O Espírito Santo podia, portanto, ser prático, e os caminhos do Senhor nem sempre eram tortuosos.

Varnhem e Arnäs distavam uma da outra quase dois dias de marcha a cavalo. Varnhem estava situada perto de Skara, não muito longe da residência do bispo, no sopé da montanha Billingen. Arnäs situava-se na margem leste do lago Vànern, onde o condado de Sunnanskog terminava e começava o de Tiveden, no sopé da montanha Kinnekulle. A propriedade de Varnhem era mais nova e estava em muito melhor estado, e era por isso que Sigrid queria passar lá o tempo mais frio, em especial quando as terríveis dores do parto estivessem para chegar. Magnus, seu marido, gostaria que eles escolhessem a propriedade de Arnäs, herdada de seus pais, para viver. Ela preferia Varnhem e os dois nunca conseguiram chegar a um consenso. Por vezes, não conseguiam nem falar do problema com a calma e a paciência que deviam existir entre marido e mulher. Arnäs precisava ser reequipada e reconstruída. Mas estava localizada numa área-limite, ao longo da floresta, sem donos, onde havia muitos terrenos livres e outros pertencentes ao rei, com possibilidades de negociação ou compra. Nessa propriedade muita coisa poderia ser mudada para melhor, em especial se servos e ferramentas fossem transferidos de Varnhem.

Não foi exactamente assim que o Espírito Santo se expressou sobre o assunto quando fez Sua aparição perante ela. Sigrid teve uma visão que não estava bem clara, uma manada de cavalos muito bonitos que brilhavam em cores que lembravam a madrepérola. Os cavalos haviam chegado, correndo na sua direcção, perto de uma lagoinha com muitas flores, as crinas eram brancas e sedosas, as caudas desdenhosamente levantadas, e eles se movimentavam alegremente, ágeis como gatos. Era um prazer vê-los em todos os seus movimentos. Não eram cavalos selvagens nem cavalos sem dono, já que pertenciam a ela. E em algum lugar por trás dos cavalos brincalhões, traquinas e sem selas, veio um jovem cavalgando num cavalo prateado, também com a crina branca e cauda majestosamente levantada. Ela conhecia esse homem jovem, mas ao mesmo tempo não o conhecia. Ele portava escudo, mas não usava elmo. A marca do escudo, ela não pôde reconhecer como sendo de qualquer dos seus parentes ou de parentes do seu marido. O escudo era totalmente branco, com uma grande cruz de sangue, nada mais.

O jovem parou o seu cavalo bem junto dela e falou com ela, e ela ouviu todas as palavras, entendeu tudo, mas ao mesmo tempo não entendeu nada. Mas Sigrid sabia que o que ele disse significava que ela teria de dar a Deus um presente, que, no momento, era a atitude mais necessária, neste condado, onde o rei Sverker reinava, isto é, dar um bom lugar para os monges de Lurõ. Mais tarde, ela observou bem os monges, à medida que saíam lentamente, após a sua longa apresentação. Não pareciam nem um pouco perturbados pelo milagre que tinham acabado de provocar. Parecia mais como se eles tivessem terminado um turno de trabalho, de quebrar pedra, um entre tantos outros turnos na Götaland Ocidental, como se eles, agora, estivessem pensando mais na ceia do que em qualquer outra coisa. Tinham conversado por um momento, coçado por um momento as manchas vermelhas que muitos deles exibiam nas carecas grosseiramente raspadas. Em muitos a pele era enrugada no rosto e no pescoço. Para eles, as coisas não eram muito fáceis em Lurõ, qualquer um podia ver isso, e o Inverno, certamente, não lhes fora muito benigno. Portanto, a vontade de Deus não era difícil de entender, aqueles que conseguiam cantar milagres precisavam receber um lugar melhor para viver e para trabalhar. E Varnhem era um lugar muito bom». In Jan Guillou, A Caminho de Jerusalém, As Cruzadas, Bertrand Brasil, 2002, ISBN 978-852-860-896-0.

Cortesia de BertrandB/JDACT