terça-feira, 23 de junho de 2020

A Demanda do Santo Graal. Manuscrito do Século XIII. «Como Lancelote e Boorz e Leonel chegaram à corte. Assim falando, chegaram a Camalote, e sabei que quantos na corte estavam ficaram com isso muito alegres, porque muito seria a festa menor e mais pobre…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Galaaz é armado cavaleiro
«(…) Então tomou suas armas e cavalgou; e, quando queria sair do mosteiro, viu, na frente de uma câmara, Boorz e Leonel armados, que também queriam cavalgar; e assim que eles o viram, dirigiram-se para ele e ele lhes disse: que ventura vos trouxe aqui? Cuidava que estivésseis na corte. Senhor, disseram eles, viemos por pavor de vossa morte, porque não partiríeis senão por alguma aflição muito grande. Por isso viemos atrás de vós até aqui e nos ocultamos o melhor que pudemos. Quando soubemos que queríeis voltar à corte, armamo-nos para voltar convosco, e não por outra razão. Então cavalgai e vamo-nos, disse ele. Então cavalgaram e, indo pelo caminho, perguntou Boorz: senhor, quem é este cavaleiro que ora fizestes? Logo o sabereis, disse Lancelote. Deixai por isso agora a pergunta. Também disse Leonel: quem quer que seja, é o mais formoso que alguma vez vi na sua idade e, se for tão bom cavaleiro como é formoso, muito bem lhe fará Nosso Senhor.

Na Corte do rei Artur
Como Lancelote e Boorz e Leonel chegaram à corte. Assim falando, chegaram a Camalote, e sabei que quantos na corte estavam ficaram com isso muito alegres, porque muito seria a festa menor e mais pobre, se eles nela não estivessem. O rei foi então ouvir missa na Sé em companhia de tantos cavaleiros que ficaríeis maravilhado de os ver. E ele trajava tão rica vestimenta que maravilha era. E com a rainha iam tantas donas e donzelas, que era grande maravilha. E ela e eles ouviram missa e foram para o paço. E aconteceu, entrementes, que, procurando os assentos da távola redonda, acharam: aqui deve ser fulano e aqui fulano. E quando chegaram ao assento perigoso, encontraram letreiro recentemente escrito que dizia: a quatrocentos e cinquenta e três anos cumpridos da morte de Jesus Cristo, em dia de Pentecostes, deve haver este assento senhor. Por Deus, disse Lancelote, quando esta maravilha ouviu: pois hoje deve haver senhor, porque da morte de Jesus Cristo a este Pentecostes há quatrocentos e cinquenta e três anos. E bem quereria, se pudesse, que este letreiro ninguém visse, até que viesse aquele que o há-de acabar. E eles disseram: nós guardaremos bem.
Então cobriram o assento com um pano de seda vermelha, assim como os outros estavam cobertos. Quando o rei veio da igreja, a rainha foi para a câmara com todas as suas donzelas e companhia. E o rei perguntou se era hora de comer. Senhor, disse Queia, já tempo é de comer, pois já está perto de meio dia; mas se vosso costume, que mantivestes até aqui em todas as grandes festas, quereis manter, não me parece que comer possais, porque em tão grande festa como esta não aconteceu ainda aventura nenhuma; e enquanto aventura não vos acontecesse, não costumáveis comer em nenhuma grande festa.
Verdade é, disse o rei; este meu costume mantive sempre desde que fui rei e manterei enquanto viver. E pelas grandes aventuras que na minha corte acontecem, chamam-me rei aventuroso; e por isso manterei as aventuras, porque, a partir da época em que deixarem de acontecer, bem sei que a Nosso Senhor não agradará que muito eu reine daí em diante. Mas assim como as aventuras costumavam acontecer nas festas grandes, nesta sei bem que no dia de hoje não faltarão, antes acontecerão as maiores e as mais maravilhosas que nunca aconteceram, pois adivinha meu coração isto. Não me incomodo de esperarmos um pouco, pois bem sei verdadeiramente que nossa festa não será hoje sem aventura, mas tive tão grande prazer com a vinda de Lancelote e de seus co-irmãos, que me esquecia o costume.

Como o cavaleiro caiu da janela bradando. Enquanto o rei isto dizia, dom Lancelote e muitos outros cavaleiros olhavam para umas janelas que davam para um regato e viram lá estar um cavaleiro que era natural de Irlanda, muito fidalgo e bom cavaleiro de armas, de muito grande fama e muito bem vestido. E estava pensando tanto, que ninguém o podia acordar de seu pensar, de modo que não prestava atenção à festa nem à corte. E quando estava assim pensando, deu um grito: Ai!, desgraçado de mim, estou morto! E deixou-se cair da janela e quebrou-lhe o pescoço. E os cavaleiros que lá estavam foram até ele para ver o que era e acharam que lhe saía pela boca e pelas narinas chama de fogo tão forte como se fosse de um fomo aceso, e tinha nas suas mãos uma carta que lhe escapou. Os cavaleiros pegaram a carta, e o rei chegou lá com seus cavaleiros para ver aquela maravilha. E porque era companheiro da távola redonda, quando o rei viu que estava morto, mandou que o levassem fora do paço, porque não quis que sua corte fosse perturbada com ele. E então o levaram para fora com muito grande dificuldade, porque queimava tanto que toda a roupa tinha virado cinza, e não se podia a ele chegar ninguém que não se queimasse, e, posto ele fora do paço, novamente começaram sua alegria como antes e muito tinham grande pesar todos do cavaleiro, porque era muito estimado. Ao rei, muito pesava, mas não o ousava mostrar para não ficar a corte mais triste. E depois que soube que estava na igreja, disse: cavaleiros, agora podeis comer, porque já por aventura maravilhosa não deixareis de comer, pois me parece muito estranha esta aventura». In Manuscrito do Século XII, Heitor Magale, A Demanda do Santo Graal, TA Queiroz, Editora da Universidade de S. Paulo, 1988, CDD 398 46, 1989, ISBN 858-500-874-1.

Cortesia de EUSPaulo/JDACT