quarta-feira, 3 de junho de 2020

A Trégua. Mario Benedetti. «…a luxuosa esperança de que o ócio seja algo pleno, rico, a última oportunidade de encontrar a mim mesmo. E isso, sim, valeria a pena anotar»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Esses são os meus desconhecidos, ao menos por enquanto. Estão instalados muito comodamente na vida, ao passo que eu fico neurasténico diante de uma folhinha com o seu Fevereiro consagrado a Goya.

Esta tarde, quando eu vinha do escritório, um bêbado me deteve na rua. Não protestou contra o governo, nem disse que ele e eu éramos irmãos, nem tocou em nenhum dos incontáveis temas do pique universal. Era um bêbado estranho, com uma luz especial nos olhos. Segurou meu braço e disse, quase apoiando-se em mim: sabe o que lhe acontece? Que você não vai a lugar nenhum. Outro sujeito que passou nesse instante me fitou com uma alegre dose de compreensão e até me dedicou uma piscadela de
solidariedade. Mas já faz quatro horas que estou intranquilo, como se realmente não me
dirigisse a lugar nenhum e só agora o percebesse.

Quando eu me aposentar, creio que não escreverei mais este diário, porque então, sem dúvida, me acontecerão muito menos coisas do que agora, e vou achar insuportável me sentir tão vazio e, ainda por cima, deixar disso um registo por escrito. Quando eu me aposentar, talvez o melhor seja me abandonar ao ócio, a uma espécie de modorra compensatória, afim de que os nervos, os músculos, a energia aos poucos se relaxem e se acostumem a morrer bem. Mas não. Há momentos em que tenho e mantenho a luxuosa esperança de que o ócio seja algo pleno, rico, a última oportunidade de encontrar a mim mesmo. E isso, sim, valeria a pena anotar.

Hoje almocei sozinho, no Centro. Quando vinha pela Mercedes, cruzei com um sujeito de castanho. Primeiro, ele esboçou uma saudação. Devo tê-lo olhado com curiosidade, porque o homem se deteve e, com alguma vacilação, estendeu-me a mão. Não era uma cara desconhecida. Era algo assim como a caricatura de alguém que eu, em outros tempos, tivesse visto com frequência. Também estendi a minha, murmurando desculpas e de certa forma confessando minha perplexidade. Martín Santomé?, perguntou ele, mostrando no sorriso uma dentadura devastada. Claro, Martín Santomé, mas meu desconcerto era cada vez maior. Não se lembra da rua Brandzen? Bom, não muito. Faz bem uns trinta anos desde aquela época, e não sou famoso pela minha memória.
Naturalmente, quando solteiro morei na rua Brandzen, mas, ainda que me moessem de pancada, não poderia dizer como era a fachada da casa, quantas sacadas tinha, quem morava ao lado. E do café da rua Defensa? Aí, sim, a névoa se dissipou um pouco e por um instante vi a barriga, com cinturão largo, do galego Álvarez. Claro, claro!, exclamei iluminado. Bem, eu sou Mario Vignale. Mario Vignale? Não me lembro, juro que não me lembro. Mas não tive coragem de confessar. O sujeito parecia tão entusiasmado com o encontro... Então respondi que sim, que me desculpasse, que eu era um péssimo fisionomista, que na semana passada me encontrara com um primo e não o tinha reconhecido (mentira). Naturalmente, era obrigatório tomarmos um café, de modo que ele me arruinou a sesta do sábado. Duas horas e 15 minutos. Obstinou-se em me reconstituir pormenores, em me convencer de que havia participado da minha vida. Eu me lembro até da tortilha de alcachofra que a sua velha fazia. Sensacional. Eu ia sempre às onze e meia, esperando que ela me convidasse para almoçar. E soltou uma bruta gargalhada. Sempre?, perguntei, ainda desconfiado. Então ele sofreu um acesso de vergonha: bom, fui umas três ou quatro vezes. Afinal, qual era a porção de verdade? E a sua velha, vai bem? Morreu há 15 anos. Car… E o seu velho? Morreu há dois anos, em Tacuarembó. Estava morando na casa da minha tia Leonor. Devia estar idoso. Claro que ele devia estar idoso. Deus do céu, que chatice. Só então ele formulou a pergunta mais lógica: e você, acabou se casando com Isabel? Sim, e tenho três filhos, respondi, encurtando o caminho. Ele tem cinco. Que sorte. E como vai Isabel? Sempre bonita? Morreu, respondi, fazendo a cara mais imperscrutável do meu repertório. A palavra soou como um disparo e ele, ainda bem, ficou desconcertado. Apressou-se em terminar o terceiro café e, em seguida, olhou o relógio. Há uma espécie de reflexo automático nisso de falar da morte e em seguida olhar o relógio». In Mario Bennedetti, A Trégua, Cavalo de Ferro, 2015, ISBN 978-989-623-048-7.

Cortesia de ECdeFerro/JDACT