domingo, 7 de junho de 2020

Deslumbrante. Madeline Hunter. «É uma boa parte da regra. Uma parte essencial, concedeu Daphne. Não impede, porém, que nos preocupemos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Audrianna entrou na sala e colocou a mala numa cadeira.
Daphne estava sentada perto da lareira, com o cabelo muito claro completamente solto e já escovado para a noite como um rio de seda. Vestia um roupão que caía solto pelo corpo esguio e alto. Ergueu os olhos do livro. Um sorriso de alívio surgiu no rosto adoravelmente delicado. Os olhos cinzas depararam com a bainha enlameada e a mala de Audrianna. Está cansada e provavelmente com fome, disse. Vá à cozinha comer alguma coisa. Era típico de Daphne não reclamar tão quanto era típico que, se ela quisesse, teria motivos de sobra para isso. Audrianna atravessou a sala atrás da prima, até à curta passagem que dava na cozinha. Originalmente uma estrutura separada, a cozinha fora ligada à casa através daquele corredor estreito na mesma altura em que se aumentara a estufa. Na grande lareira da cozinha luziam apenas algumas brasas, e Daphne cuidou de alimentar o fogo. Quando lhe entreguei a sua canção nova, Mr. Trotter deu-me dinheiro para que eu desse a você. Vinte xelins. Mr. Trotter era editor de partituras musicais em Londres e concordara em publicar algumas canções que Audrianna compusera. É muito mais do que eu esperava.
Ele disse que O meu amor inconstante vendeu particularmente bem. Disse para que eu lhe dissesse que as suas músicas tristes dão mais dinheiro do que as outras. Não tenho certeza se quero escrever só canções tristes, mas vou tentar compor mais algumas. Certamente qualquer coisa que escreva que vier do coração terá sucesso. O meu amor inconstante vendeu bem por causa disso. Possivelmente era verdade. Quando Audrianna compusera a canção, estava se sentindo devastada com a inconstância de Roger, depois de ele a ter rejeitado por causa da desgraça do pai. As lágrimas a cegavam enquanto trabalhava na melodia.
Daphne abriu um armário, examinando o interior. Acho que Mrs. Hills planeia comer o resto deste fiambre amanhã ao jantar, por isso é melhor não roubá-lo. Deixe isso aí que arranjo outra coisa. Um pouco de queijo e pão é o suficiente. Tem certeza? Se eu tivesse chegando de viagem... Pão e queijo está óptimo. Daphne serviu a comida, sentando-se depois em frente à Audrianna, do outro lado da mesa de trabalho. Foi a Londres visitar sua mãe? Sabe que só a visito quando combinamos antes, e quase sempre ao domingo. Eu não sei de nada, e nem mesmo sobre essa sua aventura. Não me havia dito uma palavra. Nem um recado. Se Lizzie não tivesse reparado que tinha feito as malas, eu poderia achar que tinha caído no rio. Então Daphne sempre ia reclamar. Tinha sido realmente indelicado partir sem dizer nada, mas uma palavra que dissesse teria dado oportunidade a muito mais protesto do que desejava.
Devo lembrar-lhe da regra para se viver nesta casa, Daphne. Uma das normas mais importantes é não nos intrometermos nas histórias nem nas vidas umas das outras. Aquela casa, composta por mulheres solteiras e independentes, mantinha a civilidade e a segurança graças à regra de Daphne. Assim como os códigos dos monges de antigamente, os preceitos da regra governavam seu comportamento e ajudavam-nas a evitar o tipo de desavença que poderia facilmente surgir num ambiente assim. No momento em que chegou, a regra lhe parecia descabida, mas logo passou a apreciar sua sabedoria.
Tem razão. É uma boa parte da regra. Uma parte essencial, concedeu Daphne. Não impede, porém, que nos preocupemos, nem que cuidemos umas das outras como irmãs. Razão pela qual a regra inclui também a indicação de que, se nos ausentarmos durante grande período, é necessário informar as outras para que não se preocupem. Não a repreendia, apesar das palavras. Sua voz era suave demais para ser considerada uma censura. Havia nela preocupação, e uma delicada compaixão, e talvez um pouquinho de mágoa, como se a discrição de Audrianna implicasse uma perda de confiança. Audrianna manteve-se empenhada em comer. Não se atrevia a olhar para Daphne. A prima era detentora de uma sabedoria de vida que excedia em muito o esperado de uma mulher que ainda não chegara aos trinta. Seria difícil conseguir esconder seu desânimo se Daphne a olhasse nos olhos». In Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.

Cortesia de EASA/JDACT