sábado, 27 de junho de 2020

A Filha do Arcediago. Camilo Castelo Branco. «Além do dito, o senhor Silva estava soffrendo um segundo tersolho no espirito. Era uma paixão, uma paixão d'alma, a mocidade na velhice, essa ancia impotente d'um coração…»


Cortesia de wikipedia e jdact

«Em 1815, um dos mais abastados mercadores de pannos da rua das Flores na cidade do Porto, era o senhor Antonio José Silva. E a 23 d'agosto, do mesmo anno, o negociante da rua das Flores que mais suava, e bufava afflicto com a calma, era o mesmo senhor Antonio José Silva. O senhor Antonio, como os seus caixeiros o chamavam, tinha razão para suar. As bochechas balofas e tremulas, dilatadas pelo calor do estio, ressumavam-lhe um succo oleoso, que descia em rêgos pelos tres rofêgos da barba, e vinha adherir a camisa ás duas grandes esponjas, que formavam os seios cabelludos do nosso amigo attribulado.
O senhor Silva inquieto, e resfollegando como um hippopótamo, passeava no seu escriptorio. O seu traje era muito simples: andava de cuecas, e alpercatas de estôpa com sola de cortiça. Este vestido, com quanto singelissimo, e o primeiro talvez que se seguiu ao que trajou Adão no Paraizo, dava-lhe ares d'um sátyro voluptuosamente gordo.
O negociante representava cincoenta e cinco annos, bem conservados. No ôlho direito tinha muita vida; o esquerdo, porém, n'esta occasião tinha um tersolho, e inflammado, de mais a mais, pelo calor.
Além do dito, o senhor Silva estava soffrendo um segundo tersolho no espirito. Era uma paixão, uma paixão d'alma, a mocidade na velhice, essa ancia impotente d'um coração, que quer romper os tecidos atrophiados de cincoenta e cinco annos para dar quatro pulos em pleno ar.
Quem era a victima d'esta paixão impetuosa? Uma menina de quinze annos, que a leitora enjoada das indecentes cuecas do senhor Silva, póde vêr, no segundo andar d'esta mesma casa, sentada a costurar na varanda, com uma gata malteza no regaço, e um papagaio ao lado, que lhe depenica os sapatos de cordovão.
É uma bonita menina, para quem gosta d'um rosto oval, olhos azues, leite e rosas na face, labios acerejados e pequenos, dentes como perolas, olhar alegre e penetrante. Conversa com o papagaio, e o metal da sua voz tem aquelle timbre sonoro e puro, que nos faz jurar na belleza de quem falla, sem lhe vermos as feições. O papagaio salta-lhe á mão, e esta mão é pequena, dedos longos, rosados nas extremidades, transparentes como o collo de sua dona, onde o proprio Lucifer de Gautier choraria uma segunda lagrima, por se vêr impossibilitado de armar ás boas mulheres (quando é de suppôr que lhe não vão lá ter as peores...)
Concordemos em que Rosa Guilhermina era uma bonita moça, e desculparemos a paixão fatal do infeliz negociante, que, no andar de baixo, está fumegando por todos os orificios, e distillando por todos os póros.
Como veio esta menina para a casa do negociante? Da seguinte maneira:

Quatro annos antes, o arcediago de Barroso, padre Leonardo Taveira, amigo velho do senhor Silva, em expansiva conversa com o seu amigo, n'um domingo de tarde, nas hortas de Campanhã (onde semanalmente saturavam as respectivas massas adiposas com o excellente vinho verde de Cabeceiras de Basto), quatro annos antes, vinha eu dizendo, fallava assim, com o seu amigo, o rubicundo arcediago: sabes tu, Silva, que me está dando bastante cuidado o futuro de Rosa! Deixa-te disso. Não tens tu, em minha mão, um bom patrimonio que lhe dês?! Acho que vinte mil cruzados, afóra o juro de cinco por cento, ha dez annos, capitalisado no proprio, a vencer até que ella faça os vinte e cinco, acho eu que é um dote de lhe tirar o chapéo. Bom dote é; mas isso não é o que me dá cuidado. O que eu queria para minha filha é um bom marido... Ó homem, já tratas disso!? Que idade tem a tua filha? Tem onze annos; d'aqui a três é mulher, e póde talhar futuros por sua conta e risco. É o que eu não quero. A pequena está em mestra-de-dentro; mas isto de mestras ensinam a cozer e a bordar, mas não sabem adivinhar o coração d'uma rapariga, que..., emfim, Silva, vou ser franco comtigo...

Diz, padre Leonardo... Que é filha de tal pae e de tal mãe... Eu tenho sido o que tu sabes... Isso lá é verdade..., tu tens sido levadinho da breca com o gado de contrabando... E a mãe, se queres que te diga a verdade, tinha uma perfeita embocadura... Diz-m'o a mim, Leonardo! Era uma namoradeira dos quatro costados... Mas, emfim, está casada, e já não é a mesma. Caro me custou o casamento... Isso custou! O que tu déste ao francez p'ra montar a loja de livros, ainda que não rendesse senão a sete por cento, podia hoje montar a reis..., deixa vêr..., quatro vezes sete vinte e oito, vão dous, com cinco cifras, faz... faz...
Aguas passadas..., não fallemos n'isso. Agora o que me importa é a rapariga, já que fiz a asneira de a procurar na roda... Tira-me o somno, Silva! Lembra-me ás vezes que esta pequena ha de ser a disciplina com que hei de ser castigado por muitas asneiras que fiz...
Isso lá é verdade. Diz o dictado: Onde se fazem, ahi se pagam. Já vem dos velhos a experiencia... Sabes tu que mais? Casa a rapariga assim que ella pozer as ventas no ar a contar os ventos. Não lhe dês tempo a namoricos. Janella fechada, e marido entre mãos, era o systema de minha mãe, que Deus haja, e minhas irmãs não deram desgosto á sua familia. Tens razão, Antonio; mas quando o diabo está atraz da porta, não vale nada fechar a janella... Olha lá... Queres tu casar com a minha Rosa?
Homem, essa!..., tu serás o espirito ruim que me appareces em corpo d'homem? Não vês que tenho cincoenta feitos, e que nunca me deu na cabeça a asneira de me casar?
Alguma vez ha de ser a primeira...
Isso lá é verdade; mas cada qual mede-se com as suas forças, e eu já não estou homem para tropelias. O que eu quero é comer bem, é beber-lhe melhor. Isto de creanças, casadas com velhos, não provam bem...
Estás enganado com o mau exemplo da tua visinha Anna...
Que pôz na cabeça do marido um chinó, porque elle era calvo..., e eu não estou menos calvo que o pobre João Pereira, que deu com o negocio em pantana, por causa da mulher...» In Camilo Castelo Branco, A Filha do Arcediago, 1854, Publicações Europa-América, 2000, ISBN 978-972-100-889-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT