sábado, 27 de junho de 2020

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «A vela e o estandarte foram levados até o altar e o grupo sentou-se nos bancos diante do órgão. As luzes da igreja se acenderam, trazendo uma luminosidade suave e fria»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Havia muitos bosques e lugares ermos, onde um violador poderia satisfazer seus instintos. Mas, e se a menina fora simplesmente morta sem ter sido tocada? Seria uma informação que não poderia ser desprezada, porque o perfil do assassino não seria de um tarado, mas de alguém que tinha outros planos. Tinha certeza de que saberia isso no fim do Caminho: o começo e o fim. Entre esses dois pontos, o perigo o acompanharia.
A flecha amarela estava bem visível e ele caminhava pensativo, quando passou por um pequeno vilarejo onde viu um homem forjando ferramentas de uso rural. Um raciocínio lhe passou pela cabeça. Aquele peregrino não devia ter comprado o ferro para o cajado em Saint-Jean-Pied-de-Port. O crime contra o espanhol fora cometido em território francês, então seria mais seguro comprar a arma na Espanha, para dificultar as investigações. Precisava chegar a Larrasoana antes do anoitecer, mas a curiosidade foi mais forte.
Chegou ao barracão, onde um homem suado malhava ferros já quentes pelo fogo. Dois rapazes que pareciam seus filhos o ajudavam. Observou o estoque de produtos feitos por eles. A maioria eram vitrais, portões, estribos para arreios, argolas para laços, ferraduras e outros objectos de uso comum na região. Havia também foices, machados, facões, garfos enormes para levantar o capim e colocar no cocho. Reparou melhor na maneira como o cabo de madeira era encaixado no vão superior da foice.
O homem parou de malhar o ferro e limpou a testa suada com um lenço sujo. Maurício aproveitou e cumprimentou-o em português: Boa tarde. Buenas tardes. O senhor poderia, por acaso, me informar se seria difícil afinar o cabo de uma foice dessas e encaixá-la dentro de um bastão mais reforçado?, e fez gestos para facilitar a sua explicação em português. A surpresa foi grande. Não esperava por aquela resposta.
Si, senor. Usted es el segundo que me lo pide en una semana.
Outro peregrino, com um capuz que encobria o rosto, havia pedido para que ele reduzisse a largura de uma foice e a deixasse um pouco mais recta, sem tirar toda a curva. Ele atendeu ao pedido e fixou a ponta da foice no cajado. O peregrino explicara que tinha medo de cachorros.
Devia ser um homem muito forte para carregar um bastão desses por 800 quilómetros, o senhor não acha?
Si, si, era un hombre enorme. Joven, cuarenta anos, hablaba poco e despacio. Usted también quiere uno?
Respondeu que não, agradeceu e seguiu o Caminho ainda mais pensativo. Comprar a arma na Espanha para cometer um crime na França era coerente, porque seria fácil para o assassino sumir naquelas montanhas dos Pirenéus e chegar a algum destino previamente estudado. O que acabara de descobrir, no entanto, era que o assassino comprara a arma em Roncesvalles e fora na direcção contrária à do Caminho, com a intenção de ir à França matar o espanhol. Para Maurício, não fazia sentido ele ter voltado para matar o padre, correndo o risco de ser identificado.
O que o levara a voltar a Roncesvalles? Encontrar-se com alguém para informar sobre a morte do espanhol? Receber novas instruções? Como é que conseguira entrar tão facilmente na Colegiata? E por onde saíra? Eram muitas as indagações que teriam de ser respondidas.
Escurecia, quando Maurício atravessou a Ponte dos Bandidos, na entrada de Larrasoana, um vilarejo do século XI. Instintivamente apressou o passo e foi directo ao albergue onde a animação dos peregrinos o ajudou a encontrar outros assuntos.

Desde Larrasoana até Pamplona, o grande companheiro do peregrino é o rio Arga. A sombra dos arvoredos, suas águas cristalinas seguem a histórica trilha em direcção a Pamplona, a cidade da corrida dos touros, restaurantes e monumentos históricos, fundada 75 anos antes de Cristo, pelo pró-cônsul romano Pompeu, de onde deriva o seu nome.
O albergue ficava perto da catedral, no prédio de um antigo colégio da Irmandade das Adoradoras, que cuidava de moças desajustadas. Depois de acomodar-se, Maurício saiu para visitar a catedral, entrando por uma porta lateral à direita, que dá para o claustro, um grande pátio interno com corredores sustentados por colunas góticas de rara beleza.
Após as cerimónias religiosas na igreja, os monges saíam por essa porta e entravam no claustro por outra porta que ficava no ângulo oposto, quando então cantavam o salmo Pretiosa in conspectu Domini mors sanctorum ejus (A morte dos santos é preciosa no conceito de Deus) e por causa desse salmo a porta ficou conhecida como Preciosa. Em cima dela existe uma moldura que representa a morte e assunção de Nossa Senhora, com os anjos afugentando alguns judeus que queriam profanar o seu corpo já sem vida. Esse simbolismo mostra a divisão que havia na cidade, onde os bairros dos navarros, judeus e burgueses eram separados por muros e pelo ódio. Conflita também com a tradição católica de que Nossa Senhora não morreu, mas caiu num sono profundo (dormitio), aos 72 anos de idade, e foi levada aos céus de corpo e alma.
Depois de visitar o pequeno museu que fica onde antes eram o restaurante e a cozinha do mosteiro, Maurício entrou na igreja e se deslumbrou com sua beleza. Esculturais colunas góticas se elevando até ao alto da nave e vitrais coloridos contrastavam com o silêncio que preenchia todos os espaços. Caminhava devagar para não perder os detalhes dos quadros, das capelas laterais e dos altares com colunas barrocas, e chegou ao altar-mor, onde a imagem da padroeira, Santa Maria Real, era protegida por grades. Absorto no seu deslumbramento, não percebeu o tempo passar e quase se assustou com o som nostálgico de um órgão que substituiu o pesado silêncio da igreja. Um grupo de homens saiu de uma sala que ficava à direita da porta de entrada, em filas de dois, carregando uma vela acesa e um estandarte de Nossa Senhora.
A vela e o estandarte foram levados até o altar e o grupo sentou-se nos bancos diante do órgão. As luzes da igreja se acenderam, trazendo uma luminosidade suave e fria. Um homem de pé, em frente do altar, puxou o Ora pro nobis domine e o Terço cantado, que o grupo respondia ao som do órgão.
O rapaz com a vela e o homem do estandarte encaminharam-se para a lateral da igreja, e as pessoas que estavam nos bancos se levantaram e os acompanharam em procissão. A cena e o cântico despertavam emoções, e assim que terminou a procissão, o coro continuou a ladainha com o miserere nobis. Ao final, quando os cantores começaram a se levantar, Maurício não resistiu e perguntou para um deles sobre a cerimónia. O homem se mostrou solícito: não somos clérigos, mas leigos, e fazemos parte da Congregação do Rosário dos Escravos de Santa Maria. Há 403 anos, nós repetimos essa cerimónia da mesma maneira como o senhor viu». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT