quarta-feira, 15 de abril de 2015

A Loba de França. Maurice Druon. «Um corvo enorme, negro, luzidio, monstruoso, quase tão grande como um ganso, saltitava em frente da lucarna. … com a asa descaída, a pálpebra enganadoramente descida sobre o olhinho negro e redondo, como se se preparasse para dormir»

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«(…) Filipe V, o Longo um homem só, avançado em relação ao seu tempo, foi vítima de uma incompreensão geral. Deixou apenas filhas; a lei dos varões, que ele próprio promulgara em seu benefício, excluiu-as do trono. A coroa passou para o seu irmão mais novo, Cados de La Marche, tão medíocre de inteligência como belo de rosto. O poderoso conde de Valois, o conde Roberto de Artois, a primalhada dos Capetos e a reacção dos barões eram de novo vitoriosas. Finalmente podiam voltar a falar de cruzada, envolver-se nas intrigas do Sacro Império, especular com a cunhagem de moedas e assistir, com um sorriso trocista, às dificuldades que então atravessava o reino de Inglaterra. Nesse país, um rei frívolo, ardiloso, incapaz, subjugado pela paixão amorosa que dedica ao favorito, bate-se contra os barões, os bispos, e também ele rega com o sangue dos súbditos a terra do seu reino. Também aí, uma princesa de França vive como uma mulher humilhada, uma marioneta, teme pela vida, conspira para se defender e sonha com a vingança. Poderia pensar-se que Isabel, filha de Filipe, o Belo, e irmã de Carlos IV de França, levou com ela para o outro lado da Mancha a maldição dos Templários…

Do Tamisa ao Garona
Um corvo enorme, negro, luzidio, monstruoso, quase tão grande como um ganso, saltitava em frente da lucarna. De vez em quando detinha-se, com a asa descaída, a pálpebra enganadoramente descida sobre o olhinho negro e redondo, como se se preparasse para dormir. Depois, de repente, estendendo o bico, procurava debicar os olhos do homem, que brilhavam por trás das barras do pequeno orifício. Os olhos cinzentos, da cor do sílex, pareciam atrair o pássaro. Mas o prisioneiro estava vivo e afastava o rosto. Nessa altura o corvo retomava o passeio, com saltos curtos e desajeitados. O homem estendeu a mão para fora da lucarna, uma bela mão forte e comprida, nervosa, lenta e insensível, e deixou-a inerte, como um ramo esquecido sobre o pó dos caminhos, à espera de agarrar o corvo pelo pescoço. Mas o pássaro também era rápido, apesar do tamanho. Com um salto, afastou-se a grasnar. Cuidado, Eduardo, cuidado, disse o homem que se encontrava por trás das barras de ferro. Um dia vou acabar por te estrangular. Isto porque o prisioneiro dera ao corvo o nome do seu inimigo, o rei de Inglaterra. O jogo durava já, há dezoito meses, dezoito meses em que o corvo tivera os olhos do prisioneiro na sua mira, dezoito meses que Rogério Mortimer, oitavo barão de Wigmore, grande senhor das Marches galesas e ex-lugar-tenente do rei na Irlanda, estivera encarcerado, juntamente com o tio Rogério Mortimer de Chirk, antigo grão-juiz do País de Gales, num calabouço da Torre de Londres. Segundo o costume, os prisioneiros da categoria de Mortimer, que pertencia à mais antiga nobreza do reino, tinham direito a um alojamento decente. Contudo, quando o rei Eduardo II mandara prender os dois Mortimer, em Janeiro de 1322, depois da batalha de Shrewsbury, contra os barões revoltados, atribuíra-lhes aquele calabouço estreito e baixo, com uma pequena lucarna que dava para o chão do pátio, nos novos edifícios que mandara construir, à direita do campanário. Obrigado, pela pressão da corte, dos bispos e até do povo, a transformar em prisão perpétua a pena de morte que começara por proclamar contra os Mortimer, o rei esperava no entanto que aquela cela malsã, aquele lugar em que era possível tocar no tecto com a testa, acabaria com o tempo por se substituir ao carrasco. De facto, se os trinta e seis anos de Rogério Mortimer de Wigmore haviam resistido a semelhante prisão, pelo contrário, dezoito meses de humidade a insinuar-se pela pequena lucarna, de água a escorrer das paredes, de bafio durante a estação do calor, pareciam ter levado a melhor sobre o senhor de Chirk. Perdera o cabelo e os dentes, tinha as pernas inchadas e as mãos tolhidas de reumatismo e já quase não saía de cima da prancha de carvalho que lhe servia de catre. O sobrinho, por seu lado, passava o dia junto da lucarna, com os olhos voltados para a luz». In Maurice Druon, Os Reis Malditos, A Loba de França, 1966, tradução de Helena Ramos, Círculo de Leitores, 2006, ISBN 978-972-42-3862-3.

Cortesia de CLeitores/JDACT