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Notou que o silêncio, um silêncio precaucioso, enchia a casa como a luz da
candeia que se acende no escuro. Um segundo... dois... três, nem que passassem
as alpoldras dum rio. Então Filomena não reconhecia o metal da sua voz?! Que
não lhe havia de parecer de todo estranho, estava em que lhe ouviu proferir subitamente
e de afogadilho: Vai ver quem é, Jorgina! Sentiu correr o fecho, e Manuel
Louvadeus empurrou a porta. E, sem aguardar sequer que se abrisse de todo, mal
lhe ofereceu passagem, de ilharga, quase acotovelando a moça, entrou com uma golfada
de vento. Estavam, como palpitara, de malga em punho à roda do lume. O cepo
ardia ao fundo na pedra lar e a sua lumalha verde descompunha a claridade da
candeia que voltejava ao centro na ponta do nagalho. Viu a todos suspensos. A
mulher olhava para ele, atónita. Os filhos olhavam para ele sem o conhecer,
pudera! O gato maltês, com o espalhafato da entrada, cobrara medo e pinchara
assarapantado para um canto, donde o observava com pupilas a fuzilar de cólera
e inquietação. E Manuel Louvadeus, risonho, sem os deixar respirar, lançou de
chofre por cima de suas cabeças perplexas: Santas noites lhes dê Deus! Só então
Filomena pulou na esteira. Muito pesada tinha a rabadilha! Pois a ela, que era
perra fina, não devia saltar ao entendimento que um homem com aquele rompante,
aquele traje, em cabelo, não era senão o seu homem que voltava?! Seria que a
penumbra da casa o desfigurasse! Qual! De relance, um relance de nada, notou
que ela estava ainda a afirmar-se, dir-se-ia incrédula ou meio timorata, olhos
postos nele mais fixos que os tições no braseiro. E foi como se lhe dessem com
uma moca. Caramba, assim estaria mudado!? Não, não tinha desculpa que, embora
andasse há uns dez anos pelo mundo, sem que há uns seis desse novas nem mandatos,
morreu, está preso, mataram-no, por muito, mesmo muito que os trabalhos e o
trópico picassem a fisionomia de um homem, o coração lhes não advertisse logo
quem ali estava. E, cheio de ressentimento, metade mágoa, metade raiva, ia a
cometer o despropósito de despir o paletó e pôr à mostra o lanho que uma gadanha
antiga lhe deixara no braço: sou o
Manuel Louvadeus ou quem sou?, quando ela se atirou para ele: Ah,
marido da minha alma!
E,
ao passo que se lhe enroscava ao pescoço, desengonçada e temível como a onça,
gemia num ricto de angústia e vexame: Que tonta eu sou que te não reconheci
logo à primeira! O coração bem me dizia que eras tu! Mas quem o havia de crer,
mudado como tu me vens?! Quem o havia de crer depois de tantos anos sem dares
sinal de vida!? E, a esconder a vergonha, abraçava-o tão abraçado, que toda a
sua cabeça se lhe amassagou contra o
perto mamaçudo, sob a asa do lenço de ramagens, que se lhe soltara do queixo.
Coitada, tresandava ao fumo da lareira e ao feno! E tal impregnação bastou para
ressuscitar nele os odores antigos, subir-lhe ao olfacto dormente o aroma da
caçoila familiar e da casa paterna, e reviver a lida com pai e mãe, a trabucada
dos estábulos pelas sementeiras, aqueles estábulos onde antes de casarem muitas
vezes se encontraram a horas mortas. E instantaneamente a sua imaginação
desferiu voo para outro quadrante. Bons tempos: raparigas em barda, saúde, sol,
a mão calejada do rijo cabo da sachola, sim, mas satisfeito com um pataco no
bolso para cigarros e o seu quartilho. E que mais!? Depois, outra volta à
imaginação, e, por contraste, perpassou-lhe diante dos olhos Mato Grosso com a
lava infernal dos garimpos, as pirogas dos rios de águas verdes improfundáveis,
o silêncio das catingas em que o sertanejo, sozinho debaixo do sol a pino, se
afoga como num mar morto, o sócio, ladrão na quinta casa! Que relâmpagos na
cabeça dum homem!» In Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam, Libraria Bertrand, Lisboa,
1958, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Cortesia
de LBertrand/JDACT