O Génio do Povo. Junho
de 1916
«(…) A Inglaterra presta-nos o seu concurso financeiro para
podermos entrar eficazmente na luta. E quanto à nossa entrada na guerra o governo
inglês reconhece plenamente a lealdade de Portugal e a assistência que já lhe
está dando e convida-o a uma maior cooperação militar ao lado dos aliados na
Europa. E, dias passados, manhã clara de Agosto, o Suffolk e o Narcissus, da armada britânica, fundeiam
no Tejo; vêm saudar Portugal. O contra-almirante Yelverton e os seus oficiais,
os correctos gentlemen de bordo,
atravessam a multidão efusiva, por um dia de brasas, e lá vão saudar o Chefe do
Estado ao Palácio de Belém. Uma visita rápida, não há tempo para recreios,
Cascais e a Sintra; um almoço de marinheiros ingleses e portugueses no Castelo
da Pena, ao ar livre; aclamações e abraços, shake-hands,
e eles lá voltam para a sua faina. Dois belos dias! Chegaram depois as missões
militares inglesa e francesa para concertar assuntos que dizem respeito à nossa
cooperação ao lado dos aliados. Vamos então entrar em guerra. Já não há,
dúvidas. Devem, pois, ter acabado os manejos que procuravam inutilizar o nosso
esforço: Qual? Vão ver. Muito pelo contrário. Q próprio Governo,
reconhecendo a necessidade urgente de fazer a propaganda da guerra, resolve
iniciar uma série de comícios junto aos grandes monumentos nacionais. Pelos
vistos dão-nos razão. O primeiro desses comícios realiza-se na Batalha.
E lá falam entre outros o António José Almeida e Afonso Costa. Resultado:
o povo aplaude. Ele compreende sempre, porque não está contaminado. Mas
a propaganda contrária recrudesce. O que aí vai agora a propósito da pena de
morte! Sob a capa do respeito pela vida humana ataca-se o Governo
violentamente. Contra a pena de morte reuniram-se todos os que têm combatido a
nossa intervenção na Europa. Foi aprovada afinal somente em caso de guerra com
país estrangeiro e apenas no teatro de guerra. Mas a oposição foi tal que
durante a sessão no Parlamento se distribuíram nas galerias papelinhos escritos
à máquina cheios de insultos e insídias e com um incitamento claro ao assassinato dos bandidos, que querem a
pena de morte. O papelinho no género é perfeito. Aquilo vem de alto. É uma canção
de ódio. Cada período, a jeitos de estrofe, depois de apontar os criminosos à
sanha popular, termina regularmente por este ritornelo, bradando a voz de
matar: Fogo! Fogo! Fogo!
O ministro da Guerra, por seu lado, não pára. Nos fins de
Setembro Lisboa anima-se com a passagem de tropas, automóveis, viaturas
militares: é a mobilização da Iª divisão que vai exercitar-se para as linhas de
Tancos. Mas o fermento da desordem já lavrou nas mesmas tropas. Parte dum
regimento de Lisboa, não sei a que pretexto, insubordina-se. O general Pereira
Eça, homem de rápidas decisões e processos rudes, sufoca tudo prontamente. Mas
afirma-se que tudo isto é um conto do
vigário. Já se diz que o Governo não terá coragem para continuar com os
comícios. Cobrem aquilo de ridículo. E começa-se a descrer geralmente da ida
das nossas tropas para a França. Tudo comenta, insinua, segreda, baralha.
E agora vá de chacota. São as revistas que jogam piada. Por exemplo, venham
aqui ao Eden e ouçam o fado do Ganga. Vale a pena: venham. O Ganga é o carroceiro afadistado
desta Lisboa gingona. Foi arrancado à rua. É assim mesmo. Sem tirar nem pôr.
Cheira ainda a alcouce e a cavalariça. Então o Amarante delicioso no papel. Vem
a matar: calças justas, blusa azul arremangada, a faixa na cinta descaída à banda,
o boné atirado para a nuca, e sobre a gorja nua um carão deslavado a respirar
insolência. E o que ele canta e diz! Gaba o grande sistema nacional da lambada.
E aquilo dito em calão, sublinhado pelo guizalhar do macho, muito rufia, muito
refilão, muito português, é de enternecer. Aí vem ele a gingar, a prisca entalada
nos dedos e chicote caído do sangradoiro. O público sorve-lhe as palavras e os
gestos.
Canta:
E quando chegar o dia
em que a gente for p'ra guerra'.
Vai o macho e põe-se a guizalhar.
Aí! Ó! Sempre estás c’uma pressa!
E a multidão ri. Ri... E cada um, ao voltar a casa vai
dizendo com os seus botões que afinal talvez o Ganga tenha razão...» In Jaime Cortesão, Memórias da Grande
Guerra, Obras Completas, Portugália Editora, Lisboa, 1969.
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