O Génio do Povo. Dezembro
de 1916
«(…) Vencer numa arrancada, sem preâmbulos, à doida, amigos,
que ideal! Agora que se passem oito ou dez meses na instrução de soldados, em
compras de material, criando oficiais, a improvisar um exército, no máximo de
segurança e método possível com estes nervos e o desarranjo anterior, oh!, isso
é insuportável. Se fosse questão de uns oito ou dez dias a resolver, vá,
tolera-se todos os diabos! Mas assim: um ror de meses, um ano, uma eternidade.
Sabe-se lá! E muitos cançam, duvidam,
verberam... Não obstante a preparação lá segue. Verdade, verdadinha, ninguém
estava acostumado a trabalhar. Oficiais de gabinete, habituados ao ronronar
burocrático, comandam uns, ao sol e ao vento, e outros vêem-se a braços com
trabalho. Adivinha-se um arquejar imenso e aflito. É o arrancar duma locomotiva
enferrujada. E aqui, além, no tumulto da obra, dentre a poeira levantada pelo
formilhar das gentes, surgem a pouco e pouco caras de homens, arrugadas de energia,
vultos ásperos de construtores, ofegantes, absorvidos na grande faina. Hão-de
ver: esta guerra vai abrir uma escola de vontades e caracteres. Dentre a
caótica massa humana erguem-se já, algumas figuras nítidas. Por enquanto são
escorços a carvão, máscaras em três vincos, olhos fitos, bocas premidas, masseteres obstinados que se contraem. Já
as escolas de oficiais milicianos deitaram cá para fora algumas centenas deles,
em Lisboa e Porto. Aqui na Lísbia,
a rapaziada sempre avara nos louvores aos mestres (Meu Deus!, com que razão!...)
é ouvi-la falar dum deles: tem extremos de carinho. À uma, todos o incensam.
Esse homem raro, pois alcançou o respeito unânime dos alunos, é o
tenente-coronel Pereira Bastos, director da Escola.
Ouço, no acaso das ruas, discípulos seus de todos os credos
políticos: sempre o mesmo culto desvanecido pelo mestre. Desvanecido, sim! Orgulham-se
dele! E eis como o pintam. Claro e insinuante na cátedra, do mesmo passo atencioso
e enérgico fora dela, imperturbavelmente calmo e correcto, conseguiu numa terra
de maldizentes e cépticos, veneração para si, um alto respeito para a sua nova
missão e, no pior dos casos, que se aproximassem da República. Em obra tamanha,
a influência moral dum verdadeiro mestre, como este, perdura no tempo e a
distância. Vamos ter uma guerra de milicianos, lembrem-se disso. A
memória das suas palavras há-de inspirar mais tarde muito acto nobre e heróico.
E os exercícios continuam. Enquanto a 1ª Divisão se prepara nas linhas de
Torres, mais 10000 homens se concentram em Tancos. Oh!, e os risinhos de certa
gente, porque o Afonso Costa assistiu, montado num cavalo, em companhia do
ministro da Guerra, ao desfilar desses milhares de homens, ao findar os
exercícios... O Afonso Costa a cavalo... Hão-de concordar que é de morrer a rir!
Pois é certo: meia Lisboa disse a sua gracinha. Há espirituosos que levam tudo
isto de troça. Muita gente começa mesmo a convencer-se de que não estamos em
guerra. Que importam os avanços das nossas tropas em território inimigo, no
Leste Africano, agora um êxito, logo um revés? Coisas nas colónias.
Também a Ibo foi atacada por um submarino.
Vêm os periódicos e dizem que à entrada do Tejo os navios da nossa divisão têm rocegado e feito explodir minas dos boches e esse trabalho é inçado
de perigos e extenua. Tudo isso, afirma-se à boca pequena, são cantigas do Leote, para mostrar serviços. Um grande número
destes detractores fala apenas pela preocupação da esperteza. É vezo do indígena. A eles, ninguém os
engana. Outros... Outros lá têm as suas razões e aproveitam o ambiente». In
Jaime Cortesão, Memórias da Grande Guerra, Obras Completas, Portugália Editora,
Lisboa, 1969.
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