terça-feira, 7 de abril de 2015

Erec e Enide. Manuel V. Montalbán. «Compreendo que a letra é vexatória para a inteligência humana, mas uma certa dose de irracionalidade ajuda-nos a continuar a ser racionais no fundamental. Como este movimento irracional que me leva ao cais…»

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«(…) Já o conhecimento entre ele e ela parte da defesa contra os vexames do anão na presença da rainha Guinevere e para a continuação do seu renascimento como cavaleiro, Erec deverá salvar Enide dos três cavaleiros ladrões, de cinco cavaleiros agressivos, do conde Galoain, dos gigantes traidores ou do conde de Limours, o qual finalmente vence com a ajuda do rei Guivert, o Pequeno, um falso inimigo providencial. Depois Erec e Enide chegam à última prova, a libertação de Maboagrain, príncipe encantado, ligada à grande festa fim de trajecto, A Alegria da Corte, presidida por Artur e Guinevere, com a última prova do seu combate com Maboagrain, para libertá-lo da maldição que o obriga a defender um vergel que é, ao mesmo tempo, prisão de amor. As sequências finais de Erec e Enide foram sempre vistas por mim como agridoces, ambíguas, melancólicas apesar do final feliz. A Alegria da Corte, o nome da casa de Llavaneres que Madrona herdou da sua mãe e que se chamava estupidamente El Remolí de Vent e a que a minha mulher concordou em mudar o nome ainda que arguisse que A Alegria da Corte era demasiado parecido com La Alegria de la huerta, uma zarzuela que julgava ser inconsistente como todos quantos pensaram educar o seu gosto musical nos detestáveis, grosseiros e asfixiantes serões de ópera do Liceu. Eu tinha herdado do meu pai uma certa curiosidade pela zarzuela, já que ele se julgava um bom barítono e se atrevia a cantar quando eu era pequeno, nas escassas reuniões da nossa escassa família ou dos escassos amigos de meus pais. À medida que eu fui crescendo foi renunciando às veleidades líricas, talvez porque lhe desse vergonha fazê-lo diante de mim e recorria às sessões de casa de banho para entoar uma ou outra ária:

Mi aldea
como el alma se recrea al volverte a contemplar
mis lares
despues de cruzar los mares otra vez vuelvo a mirar.

O meu pai nunca tinha sido um homem demasiado expressivo, mas mais tarde compreendi que a minha ascensão cultural o tinha despojado do laconismo que exibia e, desde que eu passei o exame do Estado com distinção, reinava naquela casa o silêncio porque eles nem se falavam por cansaço e nem me falavam por timidez, e eu correspondia da mesma maneira, não por orgulho mas sim porque compreendi que o meu código nunca mais seria o seu. Mas, por vezes, canto zarzuela. Mais tenor que barítono lanço-me à La tabernera del puerto:

No puede ser
esa mujer es buena
no puede ser
una vulgar sirena.

Compreendo que a letra é vexatória para a inteligência humana, mas uma certa dose de irracionalidade ajuda-nos a continuar a ser racionais no fundamental. Como este movimento irracional que me leva ao cais para ver se chega a lancha de Myrna, um pouco angustiado porque só faltam dois barcos regulares e, ao chegar mais tarde, Myrna teria de procurar um barqueiro simpático que estivesse disposto a levá-la às ilhas. E rompe o mar, como se o iluminasse, a lancha que a traz, tenho a certeza, e confirma-o o brilho da sua cabeça dourada por um excelente tom que evoca a cor natural da sua bem acabada juventude, ainda que o meu prazer pela chegada se dissipe ao vê-la acompanhada por dois colegas que se vão, não pelo melhor, insinuando: o chato do Figueiro Amaral e o insuportável Aurelio Estremoz Garcia, para servir a Deus e a si como costuma repetir uma e outra vez, pensando que é engraçadinho ou ateu, na sua imperfeição». In Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide, 2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.

Cortesia de Difel/JDACT