«(…)
Para mim não há nada mais claro. Pensa nesses monarcas que, exercendo uma
autoridade absoluta, aos olhos do povo, não passam de porcos ou abutres. Não é
uma loucura um animal destes querer passar por um rei? Abre-se a cortina de o purgatório
dos Comediantes e Floriana, vestida de moura, convida os empedernidos corações
humanos a enternecerem-se com o romance da Moura Huria. Vai
começar o entremês. Juntam-se ao público e seguem o espectáculo.
Homens,
escutai o amor
da
moura pelo rei cristão!
Depois
voltareis à guerra
da
humana condição.
Andando
a apanhar rosas
num
rosal que meu pai tinha
vi
os cativos cristãos
que
de Alcácer Quibir vinham.
No
rosal que meu pai tinha
um
espinho me picou:
era
o olhar de um cativo
que
logo me cativou.
Ai
triste de mim, coitada!
Chorava
e tinha razão
que
em sujeição que doía
era
dom Sebastião
quem
ao Xerife meu pai
de
joelhos o servia.
Não
são passados três dias
já
eu assim me dizia:
ai
triste de mim, coitada!
Renego
o nome de Huria.
Se
Branca Flor me chamara
eu
em flor me tornaria,
que
se o seu amor me dera
eu
a fuga lhe daria.
Não
são passados três dias
já
eu assim lhe dizia:
sou
a filha do Xerife
que
te venho libertar.
Tomou-me
logo nos braços,
pusemo-nos
a caminhar.
Fomos
dar a umas portas
que
eram as portas de Arzila.
Abre
o fronteiro os batentes
julgou
morrer de alegria
pois
era vivo o seu rei
que
diziam ter morrido
na
guerra que ele fizera
aos
perros da mouraria.
Ai
triste de mim, coitada!
para
gemidos e ais
é
que essas portas se abriam
que
por perder a batalha
dom
Sebastião chorava
e
penitência fazia
e
antes de volver ao reino
sete
anos se volveriam.
Ai
triste de mim, coitada!
Sombra
da sua miséria,
dei
sete voltas ao mundo.
Por
amor do rei cristão
que
Branca Flor me chamara
agora
me chamarão
a
pega de um vagabundo.
Coberto
de andrajos, Bonami entra no purgatório dos comediantes onde, no papel do
arrependido Sebastião, demonstra ao mundo a vantagem de se matarem os heróis à nascença.
À sua entrada, Floriana tapa o rosto com o braço, conservando essa atitude
durante as lamentações do rei-penitente.
Homens
que pelo veneno do sublime
tendes
o cérebro amolecido, contemplai
estes
andrajos, imagem da abjecção
que
nos revela o êxtase da gloriosa acção!
Os
túmulos dos meus antepassados abri,
seus
medonhos e mirrados despojos beijei;
na
cadavérica exalação dos heróis embebi
minha
alma com que os mortos imitei.
Por
minha glória o meu povo perdi.
Na
História quis entrar coroado de sois
e
no espelho da derrota vi
o
monstro que contra a liberdade
soltou
a peste dos heróis.
Oh,
ideais ladrões da nossa alma,
oh,
peçonha, que Satanás vos inventou?
E
vós venais cronistas, parasitas
dos
vencedores e abutres do vencido
que
a serpente da glória não tentou,
e
vós hienas, porque me escondestes
o
sórdido reverso do sublime
que
no crânio pueril do guerreiro
faz
cantar o pássaro do crime?
João
Castro corre para o purgatório dos comediantes e cai de joelhos nos degraus. Floriana
sai do seu melodramático constrangimento para manifestar uma perplexa
indignação. Senhor, porque vos afligis com culpas que não são vossas? Culpai
antes a nação embriagada pelos fumos de um império que a excedia como uma enfermidade».
In
Natália Correia, O Encoberto, Galeria Panorama, Tertúlia do Livro, Lisboa,
1969, Arquivo Nacional Torre do Tombo, 2014.
Cortesia
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