Como
se instalou e tem subsistido a ditadura em Portugal
«Quando
em Portugal de 1926, o Exército, minado pela política mas ainda dotado de certa
coesão, autoridade e sentido histórico, baniu violentamente do poder e da
administração do país os partidos políticos, aos quais muito passionalmente se
atribuíam todas as responsabilidades de uma situação insustentável, esse
exército encontrou-se, automaticamente, sob o peso de responsabilidades que
excediam enormemente a sua missão e funções específicas, as responsabilidades
de governar. Não tendo assaltado o poder por apetites de mando, considerava as
responsabilidades e riscos que resultavam da sua intervenção na política e
procurava, quanto antes, entregar a quem de direito, o pesado fardo que pusera
aos ombros. Entretanto, seria uma ditadura tornada provisoriamente necessária
para o restabelecimento de bases sérias de política, de governo e de administração.
A questão de regímen não estava em
causa: continuaria a ser a República. Os problemas a resolver, mais instantes
para a tranquilidade, honra e futuro da nação eram: primeiro, finanças e
administração; depois, o das instituições e o da organização política e económica,
problemas que, evidentemente, se punham no quadro geral dos sentimentos
democráticos tradicionais do povo e em vista a reformas sociais urgentíssimas. A
gestão financeira dos primeiros tempos da ditadura militar foi desastrosa.
Porém, certa reserva de optimismo e de confiança mantida na população, evitou a
sublevação geral dos descontentamentos, preparando admiravelmente o terreno
para o êxito de um futuro ditador das finanças. Esta missão, antes recusada por
outros professores de finanças, foi confiada a um obscuro professor de Coimbra
chamado António Oliveira Salazar, que, ao mesmo tempo, assomava nas colunas de
um jornal católico e que, em tímidos folhetos, reclamava para si direitos e
liberdade que mais tarde negaria a todos os portugueses. Esse professor Salazar
tinha fama de homem probo, temente a
Deus e técnico competente. Servido pelo ilimitado crédito de confiança que, perante
a desastrosa administração financeira dos militares, quase toda a população imediatamente
lhe abriu, esse é que foi o milagre colectivo, que a vaidade de Salazar nunca
permitiu que se proclamasse, não lhe foi difícil, pela simples aplicação dos
seus conhecimentos de técnico, e sem as dificuldades que outros técnicos eminentes
haviam encontrado em regímen
parlamentar caótico, alcançar o primeiro êxito orçamental e proclamar então, mas
como próprio, o milagre colectivo da nação. Do seu fundo messiânico, a nação
acreditou no homem providencial, com a mesma fé que emprestava a
curandeiros e às mulheres de virtude.
Entusiasmou-se pelo ditador e, partindo do reconhecimento das suas qualidades
frias de técnico, consagrou-o, precipitadamente, como homem de todas as
virtudes, inclusive das que mais evidentemente lhe faltavam. A sua vaidade,
tanto mais perigosa quanto mais se apregoava a sua modéstia, conheceu então as
primeiras satisfações; e a sua sagacidade de rústico mostrou-lhe que a melhor
maneira de manter a ilusão popular e de gozar os seus prazeres de mito, consistia
em se mostrar o menos possível, em fugir aos contactos directos com o povo, salvando-se,
assim, do risco de vir a ser conhecido na verdade crua da sua personalidade. E
isto conseguia-o ele tanto mais facilmente quanto, de facto, alcançado tudo quanto
ambicionava e lhe aprazia, o mando discricionário, só teria de sacrificar o que
lhe era indiferente ou desagradável: o convívio social, os prazeres humanos dos
espectáculos e das mulheres, as distrações do homem comum, etc. Assim se
apossou definitivamente do milagre e principiou a constituir a sua carapaça de
intangível que, pelo tempo fora, protegeria também um mito de infalibilidade. O
povo, cego e muito mais crédulo do que crente, isolado, pela censura, dos
democratas que podiam esclarecê-lo, só muito mais tarde compreenderia quanto
ódio rusticano, quantos despeitos recalcados, quanta vaidade doentia, se ocultava
sob a opa de simplicidade e modéstia que ele envergava». In Henrique Galvão, Minha Cruzada
Pró-Portugal, Santa Maria, Livraria Martins, Brasil, 1961, Arquivo Nacional da
Torre do Tombo.
Cortesia
de LMartins/JDACT