quarta-feira, 15 de abril de 2015

O Livro dos Perfumes Perdidos. M. J. Rose. «… combina a atracção sensual de ‘O Perfume’ com a beleza de ‘A Mulher do Viajante no Tempo’, apresentando uma história envolvente e inspirada em factos históricos»

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Alexandria. Egipto. 1799
Giles L'Étoile era um mestre das fragrâncias, não um ladrão. Nunca na vida roubara nada a não ser o coração de uma mulher, e ela sempre afirmara que lho entregara de bom grado. Contudo, naquela fria noite egípcia, ao descer pela vacilante escada em direcção ao antigo túmulo, cada hesitante passo que dava aproximava-o da criminalidade. L'Étoile seguia no encalço de um explorador, um engenheiro, um arquitecto, um artista, um cartógrafo e, é claro, do próprio general, todos os sábios do exército de intelectuais e cientistas ao serviço de Napoleão penetravam agora num túmulo sagrado que permanecera inviolado durante milhares de anos. A cripta fora descoberta no dia anterior pelo explorador Émile Saurent e a sua equipa de rapazes egípcios, que parara de escavar ao topar com a porta de pedra selada. Aos vinte e nove anos, Napoleão teria o privilégio de ser o primeiro homem a ver o que durante milénios repousara perdido e esquecido. Não era segredo que o general acalentava sonhos de conquistar o Egipto. Contudo, as suas grandiosas ambições iam para além das conquistas militares. Sob a sua égide, a história do Egipto estava a ser explorada, estudada e cartografada. Ao fundo da escada, L'Étoile juntou-se ao grupo reunido num vestíbulo sombriamente iluminado. Inspirou e identificou o aroma a pedra calcária e a pó de reboco, a ar bafiento e ao odor corporal dos trabalhadores, encontrando ainda vestígios de um outro aroma demasiado ténue para conseguir reconhecê-lo. Quatro colunas de granito rosa, com as suas bases soterradas sob um monte de pó e destroços, sustinham o tecto, pintado num tom forte de lápis-lazúli e exibindo uma carta celeste argêntea. As paredes revelavam várias portas, uma maior que as outras. Saurent, munido de um escopro, estava já ocupado a destruir o selo de gesso.
As paredes da antecâmara estavam decoradas com delicados e pormenorizados murais, magnificamente pintados em tons de terra. Os murais eram tão vívidos que L'Étoile esperou sentir o cheiro da tinta, mas foi o perfume de Napoleão que inalou. O motivo estilizado de nenúfares que debruava a cripta e emoldurava as pinturas despertou o interesse do perfumista. Os egípcios chamavam à flor lótus azul, e há centenas de anos que usavam a sua essência na preparação de perfumes. L'Étoile, que, aos trinta anos, tinha já passado quase uma década a estudar a sofisticada e vetusta arte egípcia da perfumaria, conhecia bem aquela flor e as suas propriedades. O seu perfume era magnífico, mas o que a distinguia de outras flores eram as suas características alucinogénias. Experimentara-as em primeira-mão e descobrira que eram uma excelente solução quando o passado vinha ao de cima e lhe complicava o presente. O lótus não era o único elemento floral presente nos murais. No primeiro painel, trabalhadores extraíam sementes de sacas em armazéns, e no painel seguinte outros havia que as semeavam em canteiros. Num terceiro, cuidavam dos rebentos que nasciam, das flores e das árvores, e depois cortavam as flores, os ramos, as ervas e apanhavam os frutos. No último painel, transportavam toda aquela abundância até ao falecido, calculou L'Étoile, e colocavam-na aos pés dele.
Ao mesmo tempo que o gesso ia tombando às lascas no chão de alabastro, Abu, o guia que Saurent trouxera, fornecia aos homens explicações sobre o que viam. O discurso era interessante, mas os odores a transpiração, a mechas em chamas e a pó de cal começaram a dominar L'Étoile, que olhou de relance para o general. Por maior que fosse o sofrimento do perfumista, sabia que para Napoleão este era bem pior. Tamanha era a sensibilidade olfativa do general, que não tolerava estar perto de determinados criados, de certos soldados, ou de mulheres cujo cheiro não lhe caísse bem. Corriam histórias dos seus prolongados banhos e do excessivo uso de água-de-colónia, a dele, uma mistura exclusiva à base de limão, lima, bergamota e rosmaninho. O general mandara vir até velas especiais (iluminavam naquele momento a câmara escura) de França por serem feitas com uma cera obtida a partir da cristalização do óleo de cachalote que, ao ser queimada, exalava um odor menos pernicioso. A obsessão de Napoleão era uma das razões por que L'Étoile ainda se encontrava no Egipto. O general pedira-lhe que ficasse mais tempo para poder dispor de um perfumista e L'Étoile não se importara. Em Paris, tudo o que de mais importante tinha perdera-se havia seis anos, durante o Reino do Terror. Em casa, à sua espera, só as recordações. Enquanto Saurent quebrava o resto do selo, o perfumista aproximou-se para estudar as gravuras na porta. Também ali havia uma bordadura de lótus azuis, estes emoldurando cartelas com os mesmos indecifráveis hieróglifos que se viam por todo o Egipto. Talvez a pedra recém-descoberta na cidade portuária de Roseta pudesse providenciar algumas pistas para a decifração daqueles símbolos». In M. J. Rose, O Livro dos Perfumes Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-039-3.

Cortesia de CAutor/JDACT