O motivo porque é difícil o Ocidental compreender o Oriente
«Como ocidental, e sentindo do mesmo modo específico,
experimentei a mais profunda estranheza diante do texto chinês do qual se
trata. É verdade que um certo conhecimento das religiões e filosofias orientais
auxiliara de certo modo o meu intelecto e a minha intuição, a fim de
compreendê-lo, assim como entendo os paradoxos das concepções religiosas
primitivas em termos de etnologia ou
de religião comparada. Este é o modo
ocidental de ocultar o próprio coração sob o manto da chamada compreensão
científica. E o fazemos, em parte devido à misérable
vanité des savants, que receia e rejeita com terror qualquer sinal de
simpatia viva, e em parte porque uma compreensão simpática pode transformar o
contacto com o espírito estrangeiro numa experiência que deve ser levada a
sério. A nossa objectividade científica reservaria este texto para a
perspicácia filológica dos sinólogos, preservando-o cuidadosamente de qualquer
outra interpretação. Mas Wilhelm penetrou demais no segredo e na misteriosa
vivência da sabedoria chinesa, para permitir que essa pérola intuitiva
desaparecesse nas gavetas dos especialistas. No entanto, este fragmento
precioso que ultrapassa o conhecimento dos especialistas talvez corra o risco
de ser tragado por outra gaveta científica. Menosprezar os méritos da ciência ocidental,
porém, equivaleria a renegar as próprias bases do espírito europeu. De facto, a
ciência não é um instrumento perfeito, mas nem por isso deixa de ser um
utensílio excelente e inestimável, que só causa dano quando é tomado como um
fim em si mesmo. A ciência deve servir e erra somente quando pretende usurpar o
trono. Deve inclusive servir às ciências adjuntas, pois devido à sua
insuficiência, e por isso mesmo, necessita de apoio das demais. A ciência é um
instrumento do espírito ocidental e com ela se abre mais portas do que com as
mãos vazias. É a modalidade da nossa compreensão e só obscurece a vista quando
reivindica para si o privilégio de constituir a única maneira adequada de
apreender as coisas. O Oriente ensina-nos outra forma de compreensão, mais
ampla, mais alta e profunda, a compreensão mediante a vida. Conhecemos
esta última como um sentimento fantasmagórico, que se exprime através de uma
vaga religiosidade, motivo pelo qual preferimos colocar entre aspas a sabedoria oriental, remetendo-a
para o domínio obscuro da crença e da superstição. Desta forma, ignoramos
totalmente o realismo do Oriente. Não se trata porém de intuições
sentimentais, de um misticismo excessivo que tocasse as raias patológicas de um
ascetismo primitivo e intratável, mas de intuições práticas nascidas da flor da
inteligência chinesa e que não temos motivo algum para subestimar. Esta
afirmação talvez pareça temerária, provocando a desconfiança de alguns, o que
não é de se estranhar, uma vez que é extremo o desconhecimento da matéria em
questão. Além disso, a singularidade do pensamento chinês salta à vista, sendo
compreensível o nosso embaraço no tocante ao modo pelo qual ele poderia
associar-se à nossa forma de pensar. O erro habitual (o teosófico, por exemplo)
do homem do Ocidente lembra o do estudante que, no Fausto, de Goethe, recebe um mau conselho do diabo e
volta as costas, com desprezo, para a ciência; o erro ao qual me refiro é o de
interpretar erroneamente o êxtase oriental, tomando ao pé da letra as práticas
da ioga, numa imitação deplorável. Abandonar-se-ia desse modo o único chão
seguro do espírito ocidental, para perder-se nos vapores de palavras e
conceitos que nunca se originariam em cérebros ocidentais e nunca neles se
enxertarão com proveito.
Disse um antigo adepto: Se
o homem errado usar o meio correcto, o meio correcto actuará de modo errado.
Este provérbio chinês, infelizmente muito verdadeiro, contrapõe-se drasticamente
à nossa crença no método correcto,
independentemente do homem que o emprega. No tocante a isso, tudo depende do
homem e pouco ou nada do método. Este último representa apenas o caminho e a
direcção escolhidos pelo indivíduo; é o modo pelo qual o indivíduo actua nesse
caminho que exprime verdadeiramente o seu ser. Se assim não fosse, o método não
passaria de uma afectação, de algo construído artificialmente, sem raiz e sem
seiva, servindo apenas à causa ilegítima do autoengano. Além disso, poderia
representar um meio de o indivíduo iludir-se consigo mesmo, fugindo talvez à
lei implacável do próprio. Tudo isto está muito longe da consistência e da
fidelidade a si mesmo do pensamento chinês. À diferença deste, tratar-se-ia, na
hipótese acima formulada, de uma renúncia ao próprio ser, de uma traição a si
mesmo e de uma entrega a deuses estranhos e impuros, artimanha no sentido de
usurpar uma superioridade anímica e tudo aquilo que é justamente o contrário do
método chinês. Essas intuições
surgiram da vida mais plena, autêntica e verdadeira, da vida arcaica da cultura
chinesa, que cresceu lógica e organicamente a partir dos instintos mais
profundos. Tudo isso é para nós inacessível e inimitável». In C. G. Jung e R. W. Wilhelm, O Segredo
da Flor do Ouro, Um Livro de Vida Chinês, Editora Vozes, tradução de Dora Silva
e Maria Appy, 2011, ISBN 978-853-260-382-1.
Cortesia
de EVozes/JDACT