sábado, 25 de abril de 2015

Refúgio Perdido. Soeiro Pereira Gomes. «Quase à porta da Universidade, retrocedi em busca doutra estrada mais longa e, por isso, mais ruim. E fiquei na encruzilhada da Vida, receoso e pedinchão, a bater a todas as portas»

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Estrada do meu destino
«Tudo me foi estranho desde o primeiro dia. O chefe, rotundo e severo, indicou-me o lugar no escritório. Apresentou-me: O novo empregado, João Silva. Os outros tomaram ares solenes nas secretárias, como reis em trono, e miraram-me. Adivinhei-lhes o pensamento: um concorrente. Enfático, o chefe pronunciou, um a um, seus nomes pesados de gerações ilustres. Curvaram por favor o tronco altivo, sem que os
braços se afastassem dos braços das cadeiras. Seguros ao lugar, não fosse eu pretendê-lo. Depois, fiquei só, repassado do silêncio e angústia. Os outros fecharam a sete chaves as portas brazonadas das suas vidas. Olhei furtivamente a sala bafienta, pejada de papéis e mesas alinhadas, monotonamente iguais. Do subconsciente, afloraram-me impressões recalcadas… Era uma manhã nevoenta de outono, e eu, mala dos livros às costas a pesar como chumbo, arrastava na estrada os pés sonâmbulos, para não ouvir os estalidos irritantes das folhas secas dos plátanos. Meu pai deixara-me à porta da escola. Faz-te homem, dissera. Aprende a ser alguém na Vida. Alguém… João Silva, o novo empregado. Eu estava outra voz na aula, entre mesas alinhadas e caras estranhas, ignorante e tímido. Seu Silva, tem de melhorar essa caligrafia. O mestre, pensei, à espera que a vara me caísse sobre os dedos. Mas as palavras doeram mais. Aos olhares trocistas dos outros, juntou-se o olhar inquisitorial do chefe. Má letra, seu Silva. Se meu pai fosse vivo… Ele, que sonhava ver-me o doutor da família, dizia que eu tinha letra de médico. Enganou-se comigo e com várias outras letras que que arruinaram a loja. Más letras, certamente. Quase à porta da Universidade, retrocedi em busca doutra estrada mais longa e, por isso, mais ruim. E fiquei na encruzilhada da Vida, receoso e pedinchão, a bater a todas as portas. Por fim, entrei para ali, de fato roçado e estômago vazio. Porta de salvação, julguei. De manhã, o chefe aparecia no escritório, impante, pedagogo. Seu Silva, corrija essa conta. Afinal, você não sabe nada. Sabia. Vinham-me à ideia lições inteiras que me deram foros de bom aluno. Sempre notas altas em Ciências... Esforçava-me por gritar: Fiz o 6.º ano do liceu. Sei mais do que o senhor. Mas calava-me e ouvia. Quem recebe, deve seu Silva. Aquilo era piada aos duzentos escudos que eu recebia no fim do mês. Os outros riam, à sucapa. Que vergonha! Enervado, mais errava e confundia. E todo o dia o mesmo verrinar obsecante: Raspe, seu Silva... Emende! O pêndulo do relógio a embalar o tempo (cada minuto, uma hora de angústia). E o meu nome a rasgar o silêncio, Silva... Ó Silva... O toque das 6 horas punha fim ao suplício. Até amanhã, diziam. Até um dia, pensava eu. Recordava o liceu à hora buliçosa da saída, tu cá, tu lá com os amigos; capa e batina destacando a condição; passo firme a caminho de porta certa. E partia sozinho, alheio à liberdade retomada, fato ruço no fio e passo trôpego a caminho de porta incerta. À noite deambulava pelas ruas. Nos cafés, não entrava com vergonha dos antigos companheiros, já doutores. Decerto, fariam vista grossa. Mas o meu fato dava nas vistas… Certa vez, entrei numa taberna. Gente maltrapilha em volta de mesas toscas, a beber e fumar. Um copo do vinho branco, pedi a medo. Desconfiados, formaram grupos sussurrantes, que m olhavam de alto a baixo. Adivinhei-lhes as palavras: um intruso. E retirei-me consternado. O meu fato dava nas vistas…
Agora, tudo me parece um sonho. O suco gástrico corroeu-me o estômago e as ideias. No entanto, a tijela de sopa que os cantoneiros repartiram comigo, identificou-me com o mundo. Recordo. Eu estava aqui estirado na berma da estrada, à hora da sesta, e o sol entrava-me pelos rasgões das calças, suspensas da gravata que tirei do pescoço. Um lugar ao sol. Há um mês que deixara o escritório, de regresso à encruzilhada. Já não era o Silva, silva rasteira entre cedros do antanho. Encontrara-me. Os cantoneiros, a meu lado, levantaram-se de enxada no ombro. Então, camarada?, perguntaram, sorridentes. Olhei a estrada longa, reberberando ao sol. Estrada do meu destino e de todos os Silvas quo têm má letra. Peguei na enxada e segui-os». In Soeiro Pereira Gomes, Refúgio Perdido, Inéditos e Esparsos, (O Pastiure, publicado no nº 318 de O Diabo, de 26 de Outubro de 1940), Edições SEN, Porto, 1950.

Cortesia de ESEN/JDACT