segunda-feira, 20 de abril de 2015

Quando os Lobos Uivam. Aquilino Ribeiro. «Tornou a olhar para a aldraba. Bato, não bato, que é a que me prende os dedos?, ouviu uma voz… A voz de Filomena, e estacou. Era lua cheia, pelos fins de Março Marçagão, na altura do ano em que os dias são iguais às noites…»

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«Manuel Louvadeus de um galão subiu os degraus. Em cima, no patamar, topou a porta fechada e deteve-se, quando ia para bater, como quem toma fôlego. Com a breca, achava tudo tal qual! Os dez anos de ausência apagaram-se como um sopro perante a obsessiva eternidade que se lhe oferecia ao lance de olhos. Tudo na mesma, a velha aldraba, puída de tanto se lhe pegar, o espelho da fechadura escantilhado a uma banda, a couceira de lenho fibroso e terso, não chamassem ao castanho os ossos de Portugal. Quer à roda, o alpendre de telha-vã e os esteios esgrouviados, a pedra negra da parede em que o musgo pastava seus herpes lucilantes, e ainda o silêncio, ah, este silêncio da moradia rústica, a desoras, humilde, suspicaz e atento como um rafeiro no ninho, quer por largo, os carvalhos do vale e os telhados próximos, se envolviam na antiga paz vesperal do céu e da terra, fusca e intáctil como a cobertura duma gare. Que distância, anos e anos que correram na levada do tempo, e as coisas conservarem-se ali iguaizinhas, estáticas, teimosas no seu ar de encantamento! Talvez mais velhas... Sim, mais velhas, ferradas mais fundo pelos dentes da morte e a despenhar-se na voragem como as telhas do beiral. E haviam, porventura, de resistir aos vaivéns mais que o coirão de um homem, entretanto que se fartava de dar tombo por esses mundos de Cristo?! Este sentimento, a transudar amargor, acabou por confortá-lo e absolver a pobre casa da sua inalterável fisionomia.
Tornou a olhar para a aldraba. Bato, não bato, que é a que me prende os dedos?, ouviu uma voz… A voz de Filomena, e estacou. Era lua cheia, pelos fins de Março Marçagão, na altura do ano em que os dias são iguais às noites, e pelo tinir dos garfos e pausas intermitentes assentou para consigo que estavam a cear. Miga bem a tigela!, dizia a voz materna, amorável no seu sotaque ralhado. Miga bem, Jaime, que só tens caldo! Depois as vozes calaram-se. Ressoam assim os córregos quando descem das serras e tropeçam nos seixos solevantados. Mas ele que tinha que especular?! Decidiu-se. Bateu uma... duas... três vezes, e postou-se, parado, à escuta, como os mendigos de pois de rezarem o padre-nosso. Mentalmente pôs-se a orçar o tempo que ia passando pelo tempo que levariam a apreender o apelo, a erguer-se da esteira, a poisar a malga, e a abrir-lhe a porta. Demoravam-se... Pareceram-lhe delongas a mais. Não teriam ouvido! Considerando afinal que as pancadas, percutidas frouxas e irresolutas, não se tivessem imposto à atenção, martelou rijo e afoito. Agora sim, uma voz juvenil, abelhuda, destas que no cortiço estão sempre prontas a acudir ao rumor, ergueu-se: Quem está lá? Gente…» In Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam, Libraria Bertrand, Lisboa, 1958, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Cortesia de LBertrand/JDACT