sexta-feira, 17 de abril de 2015

Contos Proibidos. Rui Mateus. «Tinha aberto um colégio particular na cidade, o Colégio Moderno, onde eu então passaria a estudar. Acontece que o seu director e meu professor de Português, era ferozmente anti-salazarista e o ambiente no seio do colégio para a época…»

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Os anos da inocência, 1944-1974
«(…) Tinha vinte e três anos quando, em 1967, tive o meu primeiro contacto com a Acção Socialista Portuguesa, constituída na Suíça, três anos antes, por Francisco Ramos Costa, Manuel Tito Morais e Mário Soares. A minha actividade política até então não passara de uma espécie de aprendizagem juvenil, no final dos anos 50, com grupos de oposicionistas locais, sobretudo comunistas e republicanos da cidade da Covilhã, onde nasci em 1944 e vivi até aos 17 anos. Era esporadicamente convidado, um pouco como mascote, de tertúlias anti-salazaristas de um grupo de homens que tinham, pelo menos, o dobro da minha idade e, como único elo entre si, o gosto de boas jantaradas e o ódio ao regime. Contudo, não sei bem a origem exacta dos meus sentimentos anti-salazaristas, até porque no seio da minha família pouco se falava de política. O meu pai era um católico devoto e, na juventude, tinha pertencido à Legião Portuguesa. Não por razões ideológicas, conforme viria a apurar anos mais tarde, mas porque tal fazia parte das regras do seu círculo de amigos que, naquele tempo, constituíam a classe média dominante daquele que chegou a ser um dos mais importantes centros industriais do País. Imperava a força do dinheiro e das grandes fortunas rapidamente acumuladas durante a guerra. Enquanto fui crescendo, num ambiente imensamente feliz e despreocupado, nunca vi os meus pais participarem em qualquer tipo de actividades políticas. Eram um perfeito modelo da reduzida classe média que o regime salazarista produzira. A minha mãe, hoje [na altura…] com 82 anos, vivia mais preocupada com a educação dos seus quatro filhos e com o bem-estar da família embora, ao contrário do que acontecia com meu pai, não fosse muito dada às práticas da Igreja. Depois de ter sido comerciante, durante os primeiros anos da minha infância, o meu pai associar-se-ia a uma empresa de tecelagem que, em virtude da adesão de Portugal à EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre), viria a conhecer um período de grande prosperidade, exportando a quase totalidade da sua produção. À semelhança do que acontece em muitas famílias, eu idolatrava o meu irmão mais velho, mas a nossa relação seria interrompida quando, a partir dos doze anos, ele foi estudar para Lisboa. Naquele tempo só era possível estudar no liceu local até ao segundo ano. A minha irmã tinha menos cinco anos do que eu e o meu irmão mais novo menos dez. Eu desejava ardentemente seguir as pisadas do meu irmão mais velho e estudar em Lisboa, mas logo que iniciei o primeiro ciclo passou a ser possível estudar no liceu da Covilhã até ao quinto ano. Ainda pensei que teria uma oportunidade quando, no início do terceiro ano, me envolvi numa pequena briga como filho de um deputado da União Nacional. Numa situação de evidente injustiça só eu seria punido com quinze dias de suspensão tendo o meu pai decidido tirar-me do liceu. A minha esperança de ir para o Colégio Portugal, na Parede, onde estava internado o meu irmão não seria entretanto concretizada. Tinha aberto um colégio particular na cidade, o Colégio Moderno, onde eu então passaria a estudar. Acontece que o seu director e meu professor de Português, era ferozmente anti-salazarista e o ambiente no seio do colégio para a época agradavelmente progressista. Quando Humberto Delgado visitou a Covilhã em campanha eleitoral, tinha eu apenas catorze anos. A sua caravana eleitoral foi desviada pela polícia para evitar a sua entrada na cidade pelo local onde o aguardava a maior multidão que eu jamais vira concentrada. Na cidade sentia-se uma grande tensão mas também grande entusiasmo e esperançae, sem entender muito bem o que estava em jogo, vivi intensamente aquela curta campanha distribuindo panfletos e manifestos de porta em porta. Não me recordo dos discursos, mas creio que foi então que se iniciou a minha paixão pela política. Três anos depois, seguindo as pisadas de meu irmão mais velho, obtive uma bolsa do American Field Service para estudar e viver com uma família norte-americana na pequena cidade de Cedar Rapids, no midwest dos Estados Unidos. Com esta família, com o seu filho Jon, da minha idade, e a filha Toni, dois anos mais nova, e com os meus professores e colegas da Thomas Jefferson High School aprenderia o á-bê-cê da democracia e a felicidade de viver numa sociedade livre e descomplexada. As gentes com quem ali convivi e com quem, em muitos casos, trinta e cinco anos depois, ainda mantenho estreitas relações, tinham uma prática de vida na sua comunidade e convicções baseadas na liberdade, na igualdade de oportunidade se na defesa intransigente dos direitos humanos que, sem o afirmarem, tem mais que ver como socialismo democrático descomplexado em que acredito, do que as expressões panfletárias de muitos
dos nossos socialistas oficiais. Vivi, pela TV, a fascinante experiência do presidente John Kennedy, que viria a conhecer no Verão de 1962 nos jardins da Casa Branca em recepção por ele oferecida aos bolseiros finalistas do American Field Service. Seriam, aliás, John Kennedy, Olof Palme e Leopold Senghor as principais referências políticas da minha juventude. Embora em condições tão diferentes e condicionados por realidades tão distintas desenvolveram, cada um à sua maneira, experiências de progresso, justiça social e cultura que permanecem a esperança do socialismo democrático neste fim de século (XX). Tive a invulgar honra de conhecer os três, se bem que em épocas e de maneiras diferentes. O meu contacto com Kennedy, no meio de estudantes ávidos de o conhecer, foi meramente circunstancial, mas para mim a sua carismática liderança representava a juventude, o humor e o informalismo que tanto iria marcar o estilo dos novos dirigentes sociais-democratas europeus dos anos 70. Com a sua Aliança para o Progresso parecia querer quebrar com o estilo pesado da diplomacia dos anos 40, criando esperanças renovadas nos povos do Terceiro Mundo que lutavam pela sua autodeterminação. Também não disfarçava a sua simpatia pela social-democracia europeia e parecia disposto a repensar argumentos e posições tradicionais para pôr fim ao avanço comunista [tendo] muitos dos patriotas liberais que se sentiram intensamente atraídos pela mensagem de Kennedy pertencido à Central Intelligence Agency». In Rui Mateus, Contos Proibidos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996, ISBN 972-20-1316-5.

Cortesia de DQuixote/JDACT