Desarticulação
«Brinquedo
com enigmas por dentro,
desmancho-me
e concentro
a
minha angústia sobre cada peça…
Dão-nos
corda, e começa
o
movimento;
mas
depois é o tormento
de
saber
se
era tudo a valer
ou
fingimento…»
Coimbra,7
de Outubro de 1955
Coimbra,
8 de Outubro de 1955
«Já
só dou à maior parte das notas deste Diário o tempo de fumar um cigarro.
Teimoso, o meu espirito recusa-se a destilar o bagaço dos acontecimentos num alambique
paciente e subtil. Talvez porque o resultado é sempre negativo, evita as
análises demoradas, e foge. Nos primeiros tempos, quando iniciei a grafia
sistemática dos grandes e pequenos sismos do meu inquieto mundo, cada registo documentava
pelo menos a intensidade da força que originava o abalo, o seu epicentro e a
reacção frontal que ele despertava em mim. Depois, insensivelmente, comecei a
desfibrar com a minúcia possível essas relações de causa e efeito. Agora, na
grande maioria dos casos, nem uma coisa nem outra. Exaro a ocorrência, e passo
adiante. Mas uma tal cobardia de avestruz nada resolve. Enterrar os miolos na
areia e fingir ignorar a significação dos factos, negando-lhes a luz interior
que os deve iluminar, acaba por ser mais doloroso do que enfrentá-los. É como
assistir a um crime, de costas voltadas.
Coimbra,
10 de Outubro de 1955
Consola-se
a gente de ver como esta barcaça capitalista mete água por todos os lados e se
afunda lentamente, para dar vez a outra navegação… Algum dia o dorido coro da
tragédia da história havia de subir também ao palco e representar. O papel que
ele fará, ninguém sabe. Mas é de esperar que não fique abaixo dos actores que o
precederam. Pelo menos saberá demonstrar nas tábuas o que é preciso demonstrar
de uma vez para sempre: que a
liberdade do homem é um destino.
Coimbra,
18 de Outubro de 1955
Não
chego a saber o que estes reaccionários pretendem de mim. Saem-me ao caminho,
agarram-se, colam-se, dizem piropos, e quanto mais pressa tenho, mais insistem.
Ora como se não trata de qualquer interesse vivo, sincero, profundo, há-de
haver uma explicação para o caso. A que vejo, afigura-se-me sinistra: inquisidores
que são, os sujeitos devem querer investigar, perscrutar, conhecer a última
heresia…» In Miguel Torga, Diário VIII, Coimbra, 1959, 1999, Publicações Dom
Quixote.
Cortesia
DQuixote/JDACT