O
Pastiure
«Mau
como as cobras só ele. Pior. Porque as cobras, na verdade, não fazem mal a
ninguém. E ele era mesmo mau. Os homens batiam-lhe, as mulheres detestavam-no,
e até os garotos seus iguais fugiam dele a sete pés, mal punha pé na rua. Lá vem
o Pastiure… Era o seu nome. Dera lho na pia do baptismo, havia onze anos, um
lavrador opulento, que considerava Pasteur o salvador da humanidade e dos seus rebanhos.
Dera-lhe o nome e nada mais. Embora profeticamente tivesse garantido que o afilhado
seria digno do nome célebre. Aqueles olhos vivos não o enganavam. E lá vivo,
era ele. Que o dissessem os caseiros de todas as quintas das redondezas. Não
havia muro que não saltasse, ainda que cheio de vidros como facas. Aquele, nem
a tiro. O padrinho queria-o sábio, e ali o tinha, sem rival na ladroeira de
fruta. Outros roubos, não; mas fruta… A mãe, antes de morrer, bem lhe pedira
que aprendesse. Escreves uma carta por teu punho ao padrinho, e pronto. Faz de
ti um homem. Ora. Homem já eu sou.
E
era mesmo. Ainda o vestido do baptismo não se puira no corpo dos irmãos, e já
ele dava brado na rua e nos pomares. Que na escola, então, fora o fim do mundo
e da carreira do sábio. Mas sabia de palavrões e indecências, como poucos. Pedrada
ou asneira, tinha-as na ponta da unha e da língua. Fosse a quem fosse. Então
não desafiou ele a classe inteira, mesmo nas barbas do mestre, só porque o
acusaram de roubar um lápis? Quem foi? O Pastiure, senhor professor. De zangado
que estava, o mestre nem se lembrou do corrigir a pronúncia. Quero provas.
Alguém viu? Ninguém vira. Mas todos iam jurar que fora ele. Um ladrão de fruta… Sempre a
agravante dos delitos passados, como se de um cadastrado se tratasse. O mesmo
que no Posto, há um ano, quando preso por suspeita. Foste tu quem assaltou o
pomar da Tapadinha… Fui. E
quem varejou as amendoeiras do Cruzeiro... Sim senhor. Ora pois, cesteiro que faz um cesto, faz um cento.
De nada valeu protestar. Culpado. E, no entanto, se quisesse, bem podia
indicar o autor da façanha. Mas tinha brio. Denúncia,
como os outros na escola, isso nunca. Antes chorar de raiva, apesar da troça
dos guardas. Ah!, mas na escola, a afronta exigia desforço. Um ladrão…
Ia a frase em meio, e já os tinteiros e livros andavam num borborinho.
Escândalo tamanho, que, por vergonha, até o senhor professor deixou a escola.
Desde então, o Pastiure foi o autor declarado de todos os delitos
inconfessados. Capaz de tudo é ele,
diziam.
Verdade
seja, que uma vez, pelo menos, despejara os bolsos no bornal de um pobre, só
porque este lhe chamara meu menino.
Porém, esta e outras boas acções nuncaa foram levadas à conta dos seus
desmandos. Meu menino… O estômago bem se contraíra a protestar. Mas deu tudo, e
mais daria, se tivesse. Nunca pensara ser menino para alguém, depois que
a mãe se finara. E a ruminar naquilo muitos dias, até se esqueceu dos frutos
que sorvavam nos pomares, por falta de colheita. No povoado, pasmavam de tal
sossego. Velhaco, como Judas. Anda a
preparar alguma… E ele, longe, muito longe, num mundo em que todos
os garotos eram meninos e as quintas não tinham muros. Porém, tempos
depois, fez aquela patifaria dos vidros partidos no cinema. Foi num domingo.
Ainda o cartaz não estava na praça a anunciar a Vida de Pasteur e já
havia bicha na bilheteira. E o caso não era para menos. Até o senhor regedor
disse a quem o quis ouvir: Assim se perde a autoridade. Quem seria capaz de
pensar que o tunante do Pastiure daria assunto para um fil. Contra o costume, a lotação esgotou-se. Ricos e pobres,
todos foram ao cinema nossa noite. Até o caseiro da Quinta Grande, que prometera
ao amo descobrir o ladrão dos dióspiros, andou a pé meia légua para confirmar a
suspeita. Só o garoto, o herói, por mais que andasse, não conseguiu
bilhete. Ficou cá fora, choroso, a pedinchar aos porteiros uma entrada por
favor. O costume. Como se o senhor empresário fizesse favores a qualquer.
Riram-se dele os porteiros. E foi então, de repente, que apedrejou as janelas e
entrou à viva força, Tal e qual como o Tom Mix. … Levou pancada o foi preso.
Que patife, o Pastiure. Ainda se alguém se lembrasse de chamar-lhe meu menino…» Agosto de 1940.
In
Soeiro Pereira Gomes, Refúgio Perdido, Inéditos e Esparsos, (O Pastiure, publicado
no nº 318 de O Diabo, de 26 de Outubro de 1940), Edições SEN, Porto, 1950.
Cortesia
de EdiçõesSEN/JDACT