segunda-feira, 27 de abril de 2015

O Manuscrito Alfield. Romance apócrifo que finge ser a edição crítica de um manuscrito de 1516, de uma crónica francesa desaparecida. Alan Dorsey Stevenson. « Mas essa nova Catarina, filha de Malemort, preferia ler só aqueles livros que tratam de histórias fingidas e fábulas de amor, e de outras vaidades mundanas…»

Cortesia de wikipedia

Texto Crítico do Manuscrito. Livro Dois
«(…) E é esse o maior de todos os sete pecados maiores, pois é o pecado que Deus odeia acima de todos, porque o corpo e alma do homem, que deve ser morada de Deus, torna-se morada do Diabo em virtude desse mesmo pecado. Assim, quando se levantou o cerco de Dysconvorte e Roger Besedeable retornou de volta a Malemort, a primeira coisa que fez mandou o seu frade chamar Margery Felelainne, que era então a mulher que ele melhor preferia pôr consigo na cama. Ora, acontece que Margery tinha morrido enquanto ele estava fora, por isso o frade mandou vir em lugar dela a prima, que se chamava Symone Flowry, que era moça alegre e viçosa, nem muito gorda nem magra demais, e bem mais inclinada aos prazeres do corpo que prostituta de bordel. O frade, vendo-a toda pronta e já feliz de vir à presença do senhor, começou a sorrir e disse, pelos dentes de Deus, minha filha, tirando minha senhora a rainha da França tu não tens par: não sei de melhor alimento para servir a nosso bom senhor. Aí tomou-lhe a mão e levou-a aos aposentos de Sir Roger, e quando lá chegaram a porta já estava toda aberta para ela entrar. Entra, querida, entra, disse o frade, e que Santa Maria Madalena te inspire. Frei Hugh deixou-a ali sozinha e ela entrou de cabeça cabisbaixa, como se tivesse vergonha na cara, mas quando ergueu os olhos nem viu nem percebeu ninguém ali. Então disse em voz alta, Ora, senhor, onde é que estás aí dentro; mas não houve resposta. Então se pôs a procurar em toda a câmara, mas nada viu que se parecesse com ele. Olhou aqui e ali, em cima e em baixo, e em todos os lados, mas nada achou. Quando então viu que não o achava, reclamou dizendo, Ah, senhor, procurei-te em todo o canto e não te achei em lugar nenhum, então creio que ou não estás aqui dentro ou senão deves ser o cavaleiro que anda invisível, então vou embora até que venhas me ver ou me mandes chamar de novo.
Então girou para retirar-se, e de súbito eis que lhe salta ele de onde estava escondido atrás da porta e a abraça pela cintura; assim colhida e surpreendida, ela deu um grito e num brusco movimento livrou-se das mãos dele, mas ele agarrou-a pelas tranças e puxou-a de encontro a si e beijou-a muitas vezes, chamando-a madame e mon amour. Ora, senhor, disse ela, sentindo a mão dele já lhe apalpando as coxas sob a saia, por que tanta pressa: temos tempo de sobra para brincar. E ele respondeu, Todos os dias em que estive no cerco de Dysconvorte pensava em ti, e já me via cercando-te tanto pela frente como por trás, e de todo lado, e tomando a fortaleza de teu corpo quantas vezes pudesse. E ela disse, Não era em mim que pensavas, senhor, mas em Margery minha prima; pois esta é a primeira vez que pões em mim o olho. Então mandemos vir tua prima, disse ele, para sermos três  numa cama só; onde está ela? A moça respondeu, Morta e enterrada, senhor, é onde minha pobre prima agora está; faz um mês que morreu, Deus que lhe guarde a alma. Sir Roger benzeu-se e disse, Bem, nós é que não estamos mortos, nem tu nem eu, pelo que posso ver; então façamos o que os mortos não podem fazer, mas os vivos sim, sempre que quisermos. Então trancou-se lá dentro com ela: era pouco antes de meio-dia quando a mandou chamar, e nove horas do dia seguinte quando a pôs porta afora gritando muita mer… contra ela e por que diabo não aprendera a fazer seu ofício direito. No mesmo dia, mal se recolhera o sol para descansar, mandou-a vir outra vez, e o mesmo fez no dia seguinte à mesma hora e continuou a fazer dia após dia pelo espaço de muitos dias. Era esse o mau costume da casa de Malemort: o ilícito pecado da luxúria. Os quatro filhos de sir Roger, que eram ainda meninos quando os conhecemos no livro anterior a este, já estão crescidos agora e em plena viçosa idade juvenil e ei-los aí feitos moços fortes e destros em coisas de caça e de guerra, ao passo que sua filha Katherine, a natureza operou nela tanta formosura que aí a temos convertida na moça mais bela que se conhecia então. Queria que me fosse possível dizer algo de bom sobre esses filhos e essa filha, mas, ai de mim, salvo o mais velho, é pelo contrário com grande tristeza para mim que me disponho a falar deles. Apesar de estarem ainda nos seus dias juvenis, já se mostravam servos fiéis e sinceros de Satanás, segundo estavam por predestinação predestinados a sê-lo sempre, hora a hora, noite a noite, dia a dia, verão e inverno, enquanto vivessem; pois deles bem posso declarar que era de pecado que se nutriam e de nada mais. Essa Katherine tinha aprendido a ler e escrever, e latim, e um pouco de grego: que sir Roger não era da mesma opinião desses homens que não querem das esposas nem das filhas que saibam nada de ler nem de escrever. O prazer de ler ela descobriu em criança, e muitos diziam que a sua mãe dera à luz uma nova Santa Catarina; contudo, diferente de Santa Catarina, que só lia livros de sabedoria e ciência, ou livros morais e de exemplos de bem viver que a ajudassem no salvamento de sua alma e de seu corpo, e que assim, por engenho e estudo, com a graça do Espírito Santo, superou os grandes filósofos da Grécia, e por firmeza de fé ganhou a palma do martírio, e seu corpo foi levado pelos anjos do céu a distância de doze jornadas até o monte Sinai, onde desse santo corpo escorre óleo até o dia de hoje. Mas essa nova Catarina, filha de Malemort, preferia ler só aqueles livros que tratam de histórias fingidas e fábulas de amor, e de outras vaidades mundanas, que nem trazem tesouro de ciência para a mente nem benefício de virtude para a alma». In Alan Dorsey Stevenson, O Manuscrito Alfield, A Folha de Hera, Jazzseen, Julho de 2012, Vitória Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, Biblioteca Pública do Espírito Santo, 2011.

Cortesia de Jazzseen/JDACT