Palavras
calmas a um provinciano inquieto
«Meu
caro Amigo: Diz você na sua carta, o pároco da minha freguesia há dias que iniciou
a propaganda eleitoral com esta perigosa exortação: votai todos com o vosso pároco! E comenta: é necessário opor-lhe,
desde já, uma campanha tal que o faça recolher à sua função de pastor de almas.
Porque o padre, ou representa Cristo, e nesse caso só lhe compete pregar o Amor
e a Concórdia, ou é agente eleiçoeiro, e então forçoso se torna irmos ao seu
encontro, afim de o conduzirmos ao caminho de que se haja desviado. Não sei se
alguém respondeu já à sua inquietação. Apesar disso, também quero acudir, na
esperança de que as minhas palavras possam atenuar o alvoroço que a sua carta
nos revela. Não é preciso ser-se muito lido, nem ter largo convívio com pessoas
de igreja, para poder afirmar que, embora o sacerdote em causa haja lançado esse
convite às ovelhas que pastoreia, não acredito que o seu exemplo seja
contagioso a ponto de constituir perigo para a vitória do candidato, que tão
ardorosamente se propõe defender. Sucederá isso numa ou noutra freguesia
minhota, onde a ignorância e a miséria encham a igreja até a porta; mas, nas
outras, como no resto do país, a prudência e o bom-senso do clero não deixarão
enveredar por tal caminho, onde, por vezes, há silveirais e pedregulho. Demais sabe
ele que o eleitor dos nossos dias há muito se encontra suficientemente
esclarecido para poder votar, não por sugestões, venham de onde vierem, mas segundo
o seu critério e conveniências sociais, que, quase sempre, condicionam também
as económicas.
Por
muito que se tenha feito para limitar a propaganda de pessoas e de credos
políticos, pouca gente haverá que não esteja elucidada acerca do momento que
passa e, portanto, dos interesses do país e posição, dos homens que se propõem
governá-lo. Não pode, pois, o clero constituir uma excepção, sobretudo os
velhos sacerdotes que, pelo muito que já viram e ouviram, e ainda pela
experiência de passados embates, perfeitamente sabem que o povo deixou de ser
criança, tendo atingido aquela maioridade que lhe trouxe a noção do dever e da
responsabilidade, tanto dos actos que pratica, como, dos que, por incúria ou
negligência, deixa de praticar. Sabe, pois, o clero, que as qualidades morais,
a piedade, a tolerância e a bondade do povo são tradicionais; mas sabe igualmente
que, quando alguém abusou desses dons naturais, raramente o povo deixou de
responder com aquela coragem e civismo que a história nacional regista a cada
passo.
O tempo
ensinou o clero a ser cauto. E essas lições, aliadas às que, por vezes, lhe
chegam dos superiores hierárquicos, têm-no tornado mestre na arte de prever e
saber conciliar. Pois não guarda ele, entre as pastorais diocesanas, a prudente
mensagem que, em 29 de Março de 1934,
o representante da Santa Sé junto ao episcopado português lhe transmitiu,
primeiro, através da Emissora Nacional, e em seguida, por toda a denominada boa
imprensa? Recomendava, com efeito, o patriarca Cerejeira, já nessa altura assistente
ao Sólio Pontifício: todo o esteio duma coação
puramente policial não fará mais que manter de pé um cadáver. Foi conciso e
terminante. E o clero português registou o aviso, e, assim prevenido, mantém-se
nas paróquias à escuta e de olhos bem abertos sobre a passagem do Evangelho que
aconselha prudência, naquela fórmula tanta vez recordada nas encíclicas e
rescritos pontifícios, que em seguida se repetem dos púlpitos e de boca em boca
são levadas a crentes e descrentes: a
Deus o que é de Deus e a César o que a César pertence.
Ora,
o pároco da sua freguesia sabe perfeitamente que o César de que fala o
Evangelho é o Mundo, que Deus, no acto da criação, separou logo do Céu.
Esclarecido como está, também esse padre saberá separar os dois poderes,
considerando, sobretudo, aquele que os teólogos de todas as idades e nações
recomendaram sempre, o de Deus. E como Deus é puro espírito, o seu pároco, um
momento esquecido das doutrinas do divino Mestre, há de voltar, se é que já não
voltou, à lei de Deus». In Tomaz Fonseca, Fátima, (cartas ao cardeal
Cerejeira), Editora Germinal, Rio de Janeiro, 1955, Arquivo Nacional da Torre
do Tombo.
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