terça-feira, 21 de abril de 2015

Cartas ao cardeal. Fátima. Tomaz Fonseca. «O tempo ensinou o clero a ser cauto. E essas lições, aliadas às que, por vezes, lhe chegam dos superiores hierárquicos, têm-no tornado mestre na arte de prever e saber conciliar»

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Palavras calmas a um provinciano inquieto
«Meu caro Amigo: Diz você na sua carta, o pároco da minha freguesia há dias que iniciou a propaganda eleitoral com esta perigosa exortação: votai todos com o vosso pároco! E comenta: é necessário opor-lhe, desde já, uma campanha tal que o faça recolher à sua função de pastor de almas. Porque o padre, ou representa Cristo, e nesse caso só lhe compete pregar o Amor e a Concórdia, ou é agente eleiçoeiro, e então forçoso se torna irmos ao seu encontro, afim de o conduzirmos ao caminho de que se haja desviado. Não sei se alguém respondeu já à sua inquietação. Apesar disso, também quero acudir, na esperança de que as minhas palavras possam atenuar o alvoroço que a sua carta nos revela. Não é preciso ser-se muito lido, nem ter largo convívio com pessoas de igreja, para poder afirmar que, embora o sacerdote em causa haja lançado esse convite às ovelhas que pastoreia, não acredito que o seu exemplo seja contagioso a ponto de constituir perigo para a vitória do candidato, que tão ardorosamente se propõe defender. Sucederá isso numa ou noutra freguesia minhota, onde a ignorância e a miséria encham a igreja até a porta; mas, nas outras, como no resto do país, a prudência e o bom-senso do clero não deixarão enveredar por tal caminho, onde, por vezes, há silveirais e pedregulho. Demais sabe ele que o eleitor dos nossos dias há muito se encontra suficientemente esclarecido para poder votar, não por sugestões, venham de onde vierem, mas segundo o seu critério e conveniências sociais, que, quase sempre, condicionam também as económicas.
Por muito que se tenha feito para limitar a propaganda de pessoas e de credos políticos, pouca gente haverá que não esteja elucidada acerca do momento que passa e, portanto, dos interesses do país e posição, dos homens que se propõem governá-lo. Não pode, pois, o clero constituir uma excepção, sobretudo os velhos sacerdotes que, pelo muito que já viram e ouviram, e ainda pela experiência de passados embates, perfeitamente sabem que o povo deixou de ser criança, tendo atingido aquela maioridade que lhe trouxe a noção do dever e da responsabilidade, tanto dos actos que pratica, como, dos que, por incúria ou negligência, deixa de praticar. Sabe, pois, o clero, que as qualidades morais, a piedade, a tolerância e a bondade do povo são tradicionais; mas sabe igualmente que, quando alguém abusou desses dons naturais, raramente o povo deixou de responder com aquela coragem e civismo que a história nacional regista a cada passo.
O tempo ensinou o clero a ser cauto. E essas lições, aliadas às que, por vezes, lhe chegam dos superiores hierárquicos, têm-no tornado mestre na arte de prever e saber conciliar. Pois não guarda ele, entre as pastorais diocesanas, a prudente mensagem que, em 29 de Março de 1934, o representante da Santa Sé junto ao episcopado português lhe transmitiu, primeiro, através da Emissora Nacional, e em seguida, por toda a denominada boa imprensa? Recomendava, com efeito, o patriarca Cerejeira, já nessa altura assistente ao Sólio Pontifício: todo o esteio duma coação puramente policial não fará mais que manter de pé um cadáver. Foi conciso e terminante. E o clero português registou o aviso, e, assim prevenido, mantém-se nas paróquias à escuta e de olhos bem abertos sobre a passagem do Evangelho que aconselha prudência, naquela fórmula tanta vez recordada nas encíclicas e rescritos pontifícios, que em seguida se repetem dos púlpitos e de boca em boca são levadas a crentes e descrentes: a Deus o que é de Deus e a César o que a César pertence.
Ora, o pároco da sua freguesia sabe perfeitamente que o César de que fala o Evangelho é o Mundo, que Deus, no acto da criação, separou logo do Céu. Esclarecido como está, também esse padre saberá separar os dois poderes, considerando, sobretudo, aquele que os teólogos de todas as idades e nações recomendaram sempre, o de Deus. E como Deus é puro espírito, o seu pároco, um momento esquecido das doutrinas do divino Mestre, há de voltar, se é que já não voltou, à lei de Deus». In Tomaz Fonseca, Fátima, (cartas ao cardeal Cerejeira), Editora Germinal, Rio de Janeiro, 1955, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Cortesia de EGerminal/JDACT