«Estamos
num largo da Corte Contarina, bairro miserável e mal afamado da Veneza do
século XVI. Bonami e os seus comediantes apresentam o seu espectáculo num
palco, sobre um praticável com degraus , no fundo, à Esquerda. Por cima do
palco lê-se numa tabuleta: O
Purgatório dos Comediantes. As cortinas estão corridas. O público,
constituído por mendigos, bêbados, rufias e vendedeiras de fruta e hortaliça,
incita os actores com gritos e assobios a prosseguirem o espectáculo. Floriana aparece
por entre as cortinas e, agitando as mãos no ar, esforça-se por fazer-se ouvir.
Calma,
ilustre assistência! O espectácuto vai prosseguir dentro de instantes. É só o
tempo do Senhor Bonami, primeiro actor desta famosa companhia de comediantes,
mudar de trajo. Não queremos Bonami. É um chorão. Para desgraças já nos chegam
as nossas. Isso de lágrimas é o suor dos ricos. Pudera! Se não chorarem
rebentam de esterco. A vendedeira remata a frase com uma gargalhada que
desencadeia outras na assistência. Preferimos ver-te rebolar as nádegas. Isso,
isso. Dança uma sarabanda. Digníssimos senhores e insignes damas! O nosso, espectáculo
dirige-se aos sentimentos mais elevados do público. Em seguida, teremos a
honra... Deixa-te de dar à língua e trata mas é de dar ao rabo. Pobres da
Corte-Contarina! Sois uma verdadeira aberração. O espírito é uma invenção das
privações. Não sois dignos do nome de desgraçados. Cala o bico, borrachão! Estás
podre de bêbado e queres chatear os outros com o ranho da tua alma. Um homem já
não pode ter sede.
Então,
isso começa ou não começa? Em seguida teremos a honra de interpretar para Vossas
Excelências o entremês intitulado As
Desventuras do Rei Encoberto Que Para Penar Seus Pecados Palmeia o Mundo
Sujeito Às Agruras Do Mesmo A Fim De Ser Perdoado Pelo Senhor E Regressar Ao
Seu Reino. O emigrado português João Castro vem à Corte-Contarina onde, segundo
as informações do veneziano Alessandro, poderá encontrar o monarca Sebastião
que para os seus patriotas é um cadáver, enquanto que para os que se opõem à
ocupação estrangeira, continua vivo e não está longe o dia em que virá
reivindicar a sua coroa. João Castro é um homem pálido com algo de místico e
distante. Tem uma barba negra que contrasta com a sua palidez seráfica. Pode ver-se
nele a caricatura do idealista. Alessandro é um vadio palavroso e obviamente
trapaceiro. Entram pela Direita e dialogam no proscénio. Floriana desapareceu
por detrás das cortinas e o público que enche a praça distribui-se em grupos.
Um
rei por dez escudos! Concorda que é uma verdadeira pechincha. Fiz esse preço
atendendo à tua pelintra situação de exilado político. Não te arrependas,
Alessandro. São dez escudos de glória. Com eles salvas um povo. Pois aí é que está.
Sou um lamechas incorrigível. Mas o sentimentalismo tem os seus riscos. Até me exponho
a que duvides da autenticidade da mercadoria. Quem é que fala em duvidar? Deixo
as dúvidas aos medíocres. A minha alma é grande. É a alma de um povo que quer
sobreviver. Soou a hora de fazer um pacto com os profetas. Contra estes, o suplício,
a fogueira, o gotejar do veneno doce da corrupção, nada podem. Desejar
absurdamente o impossível, eis a escolha que resta aos portugueses. Os que
chamam demência a este legítimo anseio, mais não fazem do que ocultar sob a
descrença a sua vocação para escravos.
É
assim mesmo, camarada. Com que então não acreditam em fantasmas? Querem que a
Humanidade se perca para sempre. Pois agora é que se vai ver. Porque se o actor
Bonami não é o monarca Sebastião em carne e osso que eu seja devorado pelo
espírito do lucro. Olha que ninguém me contou. Vi com os meus próprios olhos.
Quando Bonami entrou na taberna do Francesco, um exilado português correu para
ele como se visse uma aparição, lançou-se aos seus pés e gritou: Senhor, Senhor, reconheço-vos! Fui um dos
vossos soldados e bem vos vi em Alcácer Quibir. Sois o nosso rei Sebastião que
para expiar as suas culpas anda em penitência pelo mundo. Com uma descrição
verdadeiramente principesca, Bonami fê-lo levantar e disse: Amigo, é verdade que posso ser tudo o que me
apetecer e se quiseres também posso ser um rei. Confuso, não achas?» In Natália
Correia, O Encoberto, Galeria Panorama, Tertúlia do Livro, Lisboa, 1969,
Arquivo Nacional Torre do Tombo, 2014.
Cortesia
de Galeria Panorama/JDACT