sábado, 18 de abril de 2015

O Encoberto. Natália Correia. «É assim mesmo, camarada. Com que então não acreditam em fantasmas? Querem que a Humanidade se perca para sempre. Pois agora é que se vai ver. Porque se o actor Bonami não é o monarca Sebastião…»

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«Estamos num largo da Corte Contarina, bairro miserável e mal afamado da Veneza do século XVI. Bonami e os seus comediantes apresentam o seu espectáculo num palco, sobre um praticável com degraus , no fundo, à Esquerda. Por cima do palco lê-se numa tabuleta: O Purgatório dos Comediantes. As cortinas estão corridas. O público, constituído por mendigos, bêbados, rufias e vendedeiras de fruta e hortaliça, incita os actores com gritos e assobios a prosseguirem o espectáculo. Floriana aparece por entre as cortinas e, agitando as mãos no ar, esforça-se por fazer-se ouvir.
Calma, ilustre assistência! O espectácuto vai prosseguir dentro de instantes. É só o tempo do Senhor Bonami, primeiro actor desta famosa companhia de comediantes, mudar de trajo. Não queremos Bonami. É um chorão. Para desgraças já nos chegam as nossas. Isso de lágrimas é o suor dos ricos. Pudera! Se não chorarem rebentam de esterco. A vendedeira remata a frase com uma gargalhada que desencadeia outras na assistência. Preferimos ver-te rebolar as nádegas. Isso, isso. Dança uma sarabanda. Digníssimos senhores e insignes damas! O nosso, espectáculo dirige-se aos sentimentos mais elevados do público. Em seguida, teremos a honra... Deixa-te de dar à língua e trata mas é de dar ao rabo. Pobres da Corte-Contarina! Sois uma verdadeira aberração. O espírito é uma invenção das privações. Não sois dignos do nome de desgraçados. Cala o bico, borrachão! Estás podre de bêbado e queres chatear os outros com o ranho da tua alma. Um homem já não pode ter sede.
Então, isso começa ou não começa? Em seguida teremos a honra de interpretar para Vossas Excelências o entremês intitulado As Desventuras do Rei Encoberto Que Para Penar Seus Pecados Palmeia o Mundo Sujeito Às Agruras Do Mesmo A Fim De Ser Perdoado Pelo Senhor E Regressar Ao Seu Reino. O emigrado português João Castro vem à Corte-Contarina onde, segundo as informações do veneziano Alessandro, poderá encontrar o monarca Sebastião que para os seus patriotas é um cadáver, enquanto que para os que se opõem à ocupação estrangeira, continua vivo e não está longe o dia em que virá reivindicar a sua coroa. João Castro é um homem pálido com algo de místico e distante. Tem uma barba negra que contrasta com a sua palidez seráfica. Pode ver-se nele a caricatura do idealista. Alessandro é um vadio palavroso e obviamente trapaceiro. Entram pela Direita e dialogam no proscénio. Floriana desapareceu por detrás das cortinas e o público que enche a praça distribui-se em grupos.
Um rei por dez escudos! Concorda que é uma verdadeira pechincha. Fiz esse preço atendendo à tua pelintra situação de exilado político. Não te arrependas, Alessandro. São dez escudos de glória. Com eles salvas um povo. Pois aí é que está. Sou um lamechas incorrigível. Mas o sentimentalismo tem os seus riscos. Até me exponho a que duvides da autenticidade da mercadoria. Quem é que fala em duvidar? Deixo as dúvidas aos medíocres. A minha alma é grande. É a alma de um povo que quer sobreviver. Soou a hora de fazer um pacto com os profetas. Contra estes, o suplício, a fogueira, o gotejar do veneno doce da corrupção, nada podem. Desejar absurdamente o impossível, eis a escolha que resta aos portugueses. Os que chamam demência a este legítimo anseio, mais não fazem do que ocultar sob a descrença a sua vocação para escravos.
É assim mesmo, camarada. Com que então não acreditam em fantasmas? Querem que a Humanidade se perca para sempre. Pois agora é que se vai ver. Porque se o actor Bonami não é o monarca Sebastião em carne e osso que eu seja devorado pelo espírito do lucro. Olha que ninguém me contou. Vi com os meus próprios olhos. Quando Bonami entrou na taberna do Francesco, um exilado português correu para ele como se visse uma aparição, lançou-se aos seus pés e gritou: Senhor, Senhor, reconheço-vos! Fui um dos vossos soldados e bem vos vi em Alcácer Quibir. Sois o nosso rei Sebastião que para expiar as suas culpas anda em penitência pelo mundo. Com uma descrição verdadeiramente principesca, Bonami fê-lo levantar e disse: Amigo, é verdade que posso ser tudo o que me apetecer e se quiseres também posso ser um rei. Confuso, não achas?» In Natália Correia, O Encoberto, Galeria Panorama, Tertúlia do Livro, Lisboa, 1969, Arquivo Nacional Torre do Tombo, 2014.

Cortesia de Galeria Panorama/JDACT