Texto Crítico do Manuscrito. Livro Dois
«(…) A leitura desses
falsos livros creio que foi a causa do primeiro princípio e começo de seu amor
por Thibert, o qual amor vinha contra Deus e contra a razão e contra a
natureza: ele era, dela, seu próprio irmão, e ela, dele, sua própria irmã,
contudo amavam-se tão intensamente que ela ardia em chamas de amor por ele, e
ele da sua parte por ela. A história nos diz que nessa ocasião ainda não se
tinham irmã e irmão juntado carnalmente um com o outro, por medo do pecado e
por pavor do pai: pois não ousavam provocar-lhe a ira: pois muito lhe temiam a
fereza e a fúria. Mas no entanto, por inspiração do demónio, que pairava sempre
activo e diligente ao redor deles, o amor entre ambos crescia e aumentava
sempre, e queriam-se os dois tanto como outrora Tristão e a bela Isolda ou
Lancelote e a rainha Genebra. Os dois filhos que sir Roger fizera em Anne
Lablonde, que fora a sua principal concubina ainda nos dias de vida da legítima
esposa, chamavam-se, como já antes o mostrou a crónica, Giles e Thierry. Giles,
o mais velho de ambos, sentia pelas mulheres de Malemort grande e estranha
tentação, pois não era vadiar com elas que lhe dava prazer, mas espiá-las
escondido onde pudesse vê-las nuas, e aí aplicava-se de tal forma que me
envergonha dizer, pois esfregando-se com a própria mão chegava ao derrame da
semente. Thierry, que era dos bastardos o mais novo, tinha mente perversa e
desejos infames: de todas as mulheres do lugar não havia uma só que, estando
sozinha, não lhe fugisse como se ele fosse um sarraceno ou coisa pior. Havia
nessa ocasião em Malemort uma mulher embrenhada no meio da floresta que no
inverno dormia em grutas e no verão em baixo de árvores e entre moitas e sebes,
como se fosse uma fera selvagem feroz. Vivia de frutas e do que mais pudesse achar,
e não bebia a não ser água, e quase não tinha outra roupa além de uma camisa
que lhe ia até os joelhos; e os cães e os meninos se divertiam a persegui-la
por entremeio da floresta. A mulher não passava de uma pobre criatura
desatinada, mas Thierry, sempre que o corpo exigisse, saía por aqueles ermos à
sua procura e, achando-a, enchz com ela até se aliviar, saciando assim o
apetite da carne. Portanto, como bem podeis perceber, todos esses jovens viviam
vida ímpia, perversa e desregrada, e confirmavam portanto o pensamento do
moralíssimo Séneca, segundo o qual o homem não tem coisa mais vil do que si
mesmo.
Agora deixemos por algum
tempo os pecadores com seus pecados e falemos com prazer do filho mais velho de
Roger de Giac, que se chamava Roger como o pai e como o avô. Tinha uns
dezoito anos nesse tempo. Tanto a cavalo como a pé era melhor em armas do que
jamais o foi ninguém de sua idade; alguns diziam dele que pelo corpo e pelo
coração era moço apto a vir a ser homem de grandes proezas e assim tornar-se
tão bom cavaleiro como o pai; outros diziam que passaria o pai como o leão
passa o leopardo em força e bravura, para ser, em lugar do pai, o melhor
cavaleiro do condado de Níniva. Parecia-se tanto com sir Roger que nunca pai e
filho mais se pareceram em semelhança: era bem moldado de corpo, de rosto
agradável à vista, e de boa estatura, tendo oito pés de alto. No entanto, não
se parecia nem um pouco com sir Roger pelo fervor que punha no amor que votava
à religião. Certifico-vos por verdade que nele residia Nosso Senhor Jesus
Cristo, o que transparecia muito às claras na sua vida virtuosa, pois cuidava
diariamente de fazer tão-só aquilo que pudesse agradar a Jesus: tanto assim
que, se ao pai chamavam Besedeable
pelas costas, aberta e puplicamente ao filho chamavam Amidieu: amigo de Deus. Tinha gosto em amanhecer sempre cedo, antes
de qualquer outro dos irmãos e dos companheiros, e já no começo do dia rezar as
suas orações, coisa que é riqueza de grande excelência neste mundo, e rezava-as
em jejum, pois estômago cheio não pode ser inteira e perfeitamente humilde nem
devoto. No decurso do resto do dia, quando não estava ocupado com cavalos nem
espadas, punha-se todo a pensar em santos mártires e santas virgens. Todo dia à
noite antes de dormir fazia suas orações a Deus, que é nosso senhor, autor e
criador, e também à abençoada Virgem, que dia e noite sem parar orat pro
nobis, e recomendava-se a todos os santos e santas. Era muito devoto de Santa
Maria e de dizer as suas horas, e já pensava prometer a ela a sua virgindade.
Jejuava uma vez por semana, no sábado, em atenção a ela, rogando que o
guardasse sempre puro e casto e longe de tentação; pois esse jejum é para dar
ao homem vitória sobre sua carne. E dúvida não há nenhuma de que, se a maior
alegria de Deus reside no arrependimento e conversão de um pecador, a do Diabo
reside em especial no corrompimento e perdição de um justo; assim, Satã pugnava
sem descanso para impor seu domínio a Amidieu,
da mesma maneira como impusera ao pai dele e aos irmãos, e à irmã; pois de
todas essas almas cobiçava a alma desse jovem mais que todas as outras. E, se
me perguntardes em que lugar estava Satã determinado a vencer aquele justo, eu
vos responderei dizendo: em nenhum lugar senão na sua castidade; pois Satã,
como nos ensina a palavra de Leão papa, faz tudo que pode para corromper o
homem no mesmo lugar em que o acha mais forte em bons feitos e firmes
propósitos; razão por que os homens pios o Diabo tenta especialmente com a
ajuda de ímpias mulheres». In Alan
Dorsey Stevenson, O Manuscrito Alfield, A Folha de Hera, Jazzseen, Julho
de 2012, Vitória Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, Biblioteca
Pública do Espírito Santo, 2011.
Cortesia de
Jazzseen/JDACT