quarta-feira, 29 de abril de 2015

As Cidades Invisíveis. Italo Calvino. «Outras deteriorações e outros vigores se seguiram em Clarice. As populações e os costumes mudaram muitas vezes mais; restam o nome, a localização, e os objectos mais difíceis de quebrar»

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As cidades e o nome. X
«(…) Aos tempos de indigência sucediam-se épocas mais alegres: uma Clarice borboleta sumptuosa nascia da Clarice crisálida miserável; a nova abundância fazia a cidade transbordar de materiais edifícios objectos novos; afluía nova gente vinda de fora; já nada nem ninguém tinha alguma coisa a ver com a Clarice ou as Clarices de antes; e quanto mais a nova cidade se instalava triunfalmente no lugar e no nome da primeira Clarice, mais se dava conta de se afastar daquela, de destruí-la não menos rapidamente do que os ratos e o bolor: apesar do orgulho do novo fausto, no fundo do coração sentia-se estranha, incongruente, usurpadora. E então os resquícios do primeiro esplendor que se tinham salvado adaptando-se a necessidades mais obscuras eram novamente deslocados, guardados sob campânulas de vidro, encenados em vitrinas, colocados em almofadões de veludo, e já não porque podiam ainda servir para qualquer coisa, mas porque através deles se desejava recompor uma cidade de que já ninguém sabia nada. Outras deteriorações e outros vigores se seguiram em Clarice. As populações e os costumes mudaram muitas vezes mais; restam o nome, a localização, e os objectos mais difíceis de quebrar. Cada nova Clarice, compacta como um corpo vivo com os seus odores e a sua respiração, ostenta como uma jóia o que resta das antigas Clarices fragmentárias e já mortas. Não se sabe quando estiveram os capitéis coríntios no alto das suas colunas: só se recorda de um deles que por muitos anos numa capoeira manteve a cesta onde as galinhas punham os ovos, e dali passou para o Museu dos Capitéis, em fila com os outros exemplares da colecção. Já se perdeu a ordem da sucessão das várias eras; que houve uma primeira Clarice é crença bem difundida, mas não há provas que o demonstrem; os capitéis poderiam ter estado nas capoeiras antes de irem parar aos templos, as urnas de mármore poderiam ter sido semeadas com manjerico antes de o serem com ossos de defuntos. De certeza só se sabe uma coisa: um certo número de objectos desloca-se num certo espaço, ora submerso por uma quantidade de objectos novos, ora consumando-se sem serem substituídos; a regra é misturarem-se todas as vezes e experimentar juntá-los de novo. Talvez Clarice haja sempre sido apenas uma barafunda de bugigangas partidas, mal combinadas, fora de uso.

As cidades e os mortos. 3.
Não há cidade mais propensa que Eusápia a gozar a vida e a fugir às ansiedades. E para que o salto da vida para a morte seja menos brusco, os habitantes construíram debaixo de terra uma cópia idêntica da sua cidade. Os cadáveres, secos de maneira que fique o esqueleto revestido de pele amarela, são levados lá para baixo para continuarem as ocupações de antes. Destas, são os momentos despreocupados que têm a preferência: a maior parte deles, colocam-nos sentados à volta de mesas postas, ou em posição de dança ou no gesto de tocar trompas. Mas também todos os comércios e ofícios da Eusápia dos vivos continuam ao trabalho debaixo de terra, ou pelo menos aqueles que os vivos realizaram com mais satisfação que enfado: o relojoeiro, no meio de todos os relógios parados da sua oficina, encosta uma orelha ressequida a um relógio de pêndulo sem corda; um barbeiro ensaboa com o pincel seco o osso das bochechas de um actor enquanto este estuda o papel fixando o guião com as órbitas vazias; uma rapariga de caveira sorridente ordenha uma carcaça de bezerra». In Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, 1990, Editorial Teorema, Lisboa, 2003, ISBN 972-695-374-X.

Cortesia de ETeorema/JDACT