quinta-feira, 9 de abril de 2015

Os Meninos Judeus Desterrados. Orlando Piedade. «A coabitação tornava-se perigosa e é crível que da amabilidade à hostilidade estava o cair da ficha. Ele não hesitaria em denunciá-los, caso notasse que tais práticas continuavam a verificar-se»

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De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) O meu bisavô, na impossibilidade de se desfazer de todos os seus bens, do pé para a mão, a um preço justo, por baixo de mão enterrou toda a reserva de ouro que possuía para não a desbaratar. O espírito na altura era: o amanhã é uma incógnita e nunca sabemos quando é que o destino troca as voltas aos nossos pés e nos traz de volta para calcar um vestígio antigo que a nossa lucidez procura esconder, face à incapacidade de esquecer. Foi a decisão mais acertada, no meio da enrascada, aquela que facilitou o renascer das cinzas quando se viram de pés e mãos atadas, depois de terem estado com o pé no estribo. A mão morte, perante uma mão camaleónica solidariamente estendida, permitiu que a queda fosse de pé, com tempo para pensar, pé ante pé, a condição de cristão-novo. O anfitrião tinha abraçado com seriedade e zelo a nova religião. Ao ver o regresso de todos, baptizados, ficou com a ideia de que as suas palavras, a pés juntos, tinham surtido efeito, longe de imaginar as peripécias que compuseram e aventura. Para ele, a penúria estava directamente relacionada com a insistência em cultivar a fé mosaica, o facto de terem batido o pé até à última. E tinha alguma razão, digo
alguma porque isso não é nenhum a garantia. Patenteava vários aspectos do ritual cristão no seu dia-a-dia, mesmo na intimidade familiar ou privacidade do seu lar, e foi assim, de alma transparente, que ele recebeu os seus hóspedes, isto é, pôs a nu tudo o que de mais sincero ia no seu âmago. A recepção foi feita num ambiente festivo, com direito a um banquete de boas-vindas composto, quase exclusivamente, por alimentos impróprios para consumo humano e que deveriam ser rejeitados, segundo as regras alimentares do nosso povo, mas bater o pé era proibido, face à condição em que se encontravam. O norte era algo que os meus antepassados não conheciam, naqueles dias. Todavia, a avaliar pelas palavras da minha avó, a única certeza reinante era o repúdio por tudo aquilo que se passava e, consequentemente, a rejeição cada vez mais consciente da nova religião, contudo, a capacidade de contenção era tão importante como aceitar o baptismo. Olhavam com desconfiança para tanta boa vontade e para as motivações do antigo rabino. O facto é que aquilo tudo causava alguma apreensão, uma vez que as práticas judaizantes faziam parte do dia-a-dia deles, aliás, como continuam a fazer. A coabitação tornava-se perigosa e é crível que da amabilidade à hostilidade estava o cair da ficha. Ele não hesitaria em denunciá-los, caso notasse que tais práticas continuavam a verificar-se. Esse era o perigo mais iminente, mas qualquer outra imprudência fora da intimidade familiar, que conduzisse ao escapar de algum indício, também o levaria a pagar, em conjunto com eles, uma factura bastante elevada.
Se dependesse da vontade nua e crua dos meus bisavós, estaria a relatar tudo isto noutro lado qualquer. Onde, não sei, mas aqui não seria! Contra a própria vontade, acabaram por erguer aquela que hoje é nossa casa, a algumas centenas de pés do local onde, solidariamente, foram acolhidos. Nessa altura, assistia-se ao regresso de muitos que optaram pela expulsão, arrastavam-se de volta por todos os meios possíveis. Preferiram claramente o sofrimento a que eram sujeitos em Castela. Encontraram sofrimento tanto no alto mar como em terra.
Com eles chegaram os piores relatos acerca. dos que partiram, foram morros pelos turcos para lhes roubarem o ouro que haviam engolido, passaram fome e foram consumidos pela peste, foram lançados nus, pelos capitães dos navios, às ilhas desertas e aos mares, depois de espoliados dos seus haveres, foram vendidos como serviçais em Génova e, os que chegaram aos portos no norte de África, como era seu desejo, acabaram saqueados e assassinados. Passou a fazer parte do quotidiano dessa gente, minha gente de outros tempos, visitar e procurar aqueles que regressavam na esperança de alguma vez se saberem notícias dos seus que, um dia, contra a sua vontade, se tinham afastado em busca de um direito, o direito à paz! Foi assim durante meses, até chegar a confirmação do pior cenário, alcançaram terra firme e todos tiveram o mesmo destino. Triste fadárioIn Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.

Cortesia de Colibri/JDACT