domingo, 12 de abril de 2015

As Extraordinárias Aventuras da Justiça Portuguesa. Sofia Pinto Coelho. «… passam juízes, advogados, procuradores, funcionários judiciais e pessoas como nós que por uma ou outra razão já se viram a braços com a Justiça….»

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«Em Portugal, os juízes são, regra geral, impolutos e conscienciosos. Persiste, todavia, uma certa opacidade quanto aos critérios de promoção na carreira, bem como resistência à avaliação externa. Por outro lado, o vício de arrogância na magistratura continua. Também surgem, aqui e acolá, juízes desequilibrados ou ignorantes. Não obstante, o mais perturbador é o arbítrio daqueles que usam a justiça para ajustes de contas. Eis histórias que ilustram estas e outras facetas, algumas das quais apenas divertidas.

A imagem da juíza
Naquela segunda-feira, foi o costume no tribunal da Boa-Hora. Por entre funcionários no pátio, aos berros, a fazer a chamada para os julgamentos, viam-se amontoados de famílias ciganas e, aqui e acolá, uns rufias, seguidos de perto pelas mulheres. O que destoava era a quantidade inusitada de polícias. Também estás cá?, perguntou um. Claro! Não ia perder o julgamento do ano! Quem ia ser julgado era um guarda da PSP que teve de ouvir o juiz ler a acusação, tintim por tintim: crime de prisão ilegal, injúrias e ofensas corporais agravadas. Os queixosos eram, nem mais nem menos, uma juíza e o seu marido que, por sinal, era advogado. O polícia lá se explicou. Nessa noite, estava a chefiar a esquadra da Rua de São Paulo. Um dos guardas apareceu-lhe com um casal detido por desordem e desrespeito à autoridade. Quando foram identificados, a mulher disse que era juíza, mas não trazia consigo nenhum documento de identificação. Ele mirou-a de alto a baixo e não acreditou. Juiz: O que é que o fez duvidar que a senhora doutora fosse de facto uma juíza? Polícia: Não parecia, não se comportava como tal. Juiz: Porque é que diz isso? Polícia: Porque conheço bem aquela zona do Cais do Sodré. É uma rua onde, porta sim, porta não, há bares frequentados por prostitutas e homens que andam atrás delas. Não conheço ninguém de boas famílias que frequente esses bares. E, além disso, a maneira como ela estava vestida... Juiz: Ah! Então, para si o hábito faz o monge? Polícia: Ali, faz. Juiz: Oiça lá, não estamos aqui a brincar. Todas as pessoas, aqui presentes nesta sala, sabem que os juízes são pessoas normais, iguais às outras.
Ao interrogatório do juiz, seguiu-se o do Ministério Público.
Procuradora: O senhor não sabe que no Cais do Sodré também há bares frequentados por estudantes e intelectuais? Polícia: Sei, mas não é no Texas Bar, à porta onde estava a senhora... Juiz: Trate a senhora por senhora doutora, se faz favor. Polícia: Sim, senhor doutor juiz. Ali, onde estava a senhora doutora só há prostitutas. Juiz: Está bem, está bem, isso agora não interessa.
Depois, a juíza entrou na sala de audiências para contar a sua versão. É então que o vestido vem à baila. Era um vestido de reveillon, explicou. Preto, justo, com um casaquinho por cima. Ela e o marido estavam no Cais do Sodré, numa noite de passagem de ano, quando tropeçaram num polícia tão embriagado que estava quase caído no meio da rua. Era, soube-se mais tarde, um subchefe. Teria sido por isso que os prenderam, por terem visto aquilo que não deviam ter visto. A juíza garantiu que nem sequer estava embriagada nem provocara ninguém e que, a dada altura, teve medo porque o ambiente na esquadra ficou pesado. O guarda negou todas as acusações. Era mentira que tivesse atirado a juíza contra a parede. Era falso que lhe tivesse apertado as algemas de propósito. Nunca dissera que comia juízes ao pequeno-almoço. Nem insinuara que até podia ir a casa da juíza buscar os documentos, mas só se fosse sozinho com ela... Porém, continuava por explicar o motivo da detenção e o guarda que foi interrogado a seguir não ajudou nada. O seu testemunho foi tão atabalhoado que acabou por enterrar o colega que, aliás, viria a ser condenado. Só num ponto é que os dois polícias tinham a mesma opinião, conta a jornalista que, na altura, narrou este julgamento. Tanto um como outro, garantiram que o vestido da juíza era mesmo transparente e indecente.

Juiz fora de horas
Dentro dos tribunais, compreende-se que se exija decoro. A pergunta que se impõe é se, fora das horas de serviço, poderão os juízes vestir-se como quiserem ou ir onde lhes apetece? Nem sempre. Foi o caso de um juiz que se tornou cliente VIP de uma casa de alterne. Quando um dia a polícia vasculhou a boite, à procura de imigração ilegal, o porteiro esclareceu imediatamente que o senhor juiz bebia copos com as meninas,
descia ao rés-do-chão para os quartos e o dono perguntava-lhe sempre: Quem quer que o acompanhe? Mas nunca passava pela caixa para pagar como os outros clientes. O juiz foi alvo de um processo de averiguações mas, daquilo que se sabe dos jornais, não passou disso. Aliás, manteve-se em funções no mesmo tribunal. Bem diferente foi o que aconteceu a um outro juiz, suspenso durante um ano porque frequentava bares homossexuais. No cadastro ficou com o seguinte registo: Não poderão deixar de se qualificar como gravemente atentatórias do decoro, dignidade e prestígio da função judicial, actos como os de excesso de bebidas alcoólicas em público e da continuada convivência com pessoas em circunstâncias que objectivamente favoreciam a fama de práticas homossexuais, com persistência de tais actos mesmo depois do visado se aperceber da desfavorável reacção que suscitavam, quer na área da comarca, quer na da cidade, onde tão nefasta e degradante fama também já havia chegado. A história passou-se há mais de quinze anos mas não deixa de ser elucidativa». In Sofia Pinto Coelho, As Extraordinárias Aventuras da Justiça Portuguesa, Histórias insólidas de juízes, advogados, procuradores e de todos nós, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-626-186-3.

Cortesia de ELivros/JDACT