quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Chão de Sombras. Maria do Rosário Pimentel. Estudos sobre Escravatura. «Chegavam como uma mercadoria altamente valorizada, concentrando-se nas zonas litorais e, em especial, nos centros de maior afluência comercial. Dali partiam com destino aos trabalhos do campo, às actividades urbanas ou, muito simplesmente, esperavam a exportação para o país vizinho ou para terras do Novo Mundo»

Cortesia de ecolibri

A todos aqueles que resistem à imposição de domínios, à violação de ideias e sentimentos, à perversão de princípios.
Reflexões sobre a escravidão e o tráfico negreiro
«Os mercadores descobriram-lhes o gosto e por seu intermédio desenvolveram o negócio de tal modo que passou a ser a principal ou quase exclusiva actividade económica realizada na costa ocidental africana. Mas, o rápido desenvolvimento do tráfico transoceânico só foi possível com a participação da rede comercial africana, que os europeus aproveitaram como intermediária entre os estabelecimentos comerciais do litoral que dominavam e as zonas produtoras do interior, onde raramente penetravam.
A Portugal chegavam escravos das mais diversificadas regiões. Carregavam nos corpos e nas feições o exotismo das «novas» terras e na alma o medo da incerteza, junto com o desespero da mísera condição.
Vinham de África, do Oriente e, em menos quantidade, do Brasil. Em 1559 Duarte Nunes de Leão comprovava a existência de grande variedade de etnias entre a população escrava e referia, nomeadamente, os que vinham das regiões da Etiópia, da Guiné, os índios, os bengalas, os iaos, os arábios, os malabares, os brasis e os cafres. Uns eram de razoável brancura, outros negros retintos e outros pardos, acobreados ou de outras tonalidades.

Eram muitos, sem que todavia o seu número justificasse o reparo nitidamente exagerado de Nicolau Clenardo quando, em 1535, escrevia que Portugal estava a «abarrotar com essa raça de gente». Pode no entanto dizer-se que eram pouco habituais nestas paragens, o que ocasionava espanto e proporcionava comentários, não só porque a maior parte das vezes se reflectia neles uma existência degradante, mas também porque ao seu exotismo se aliava um simbolismo repugnante. E, tendo em atenção que a maior parte dos escravos que chegavam ao reino estava sujeita a exportação, verifica-se que era infundado o receio dos escravos virem a ser «mais do que os portugueses livres de condição». Não é tanto a sua quantidade que é importante, mas o facto de a sua presença ter tido peso suficiente para se imiscuir e deixar marcas na toponímia, nas tradições, na cultura e no sangue.
Chegavam como uma mercadoria altamente valorizada, concentrando-se nas zonas litorais e, em especial, nos centros de maior afluência comercial. Dali partiam com destino aos trabalhos do campo, às actividades urbanas ou, muito simplesmente, esperavam a exportação para o país vizinho ou para terras do Novo Mundo. Todavia, quer na cidade quer no campo, o escravo era sempre destinado às tarefas mais vis, àquelas que requeriam um maior esforço e, recusadas pelo homem livre, só muito raramente este aceitaria numa época em que proliferavam os escravos. Não há dúvida que a sua presença veio facilitar um certo desprezo pelo trabalho, bem como a exaltação de manias nobiliárquicas.

Venda de escravos na costa africana
Museu de Arquitectura de Liége, 1989
jdact

Isto não significa, no entanto, que se aceite a argumentação de que o aumento do trabalho escravo se ficou a dever ao desinteresse dos portugueses pelo trabalho. Discordamos de Anna J. Cooper quando afirma, na sua tese de doutoramento, que a origem da escravatura moderna deva ser procurada «dans les moeurs mêmes des Espagnols et des Portugais, peu enclins au travail manuel et trop indolents pour s'y odonner eux-mêmes». A emigração para a ocupação, colonização e exploração de certas zonas ultramarinas, e a movimentação das classes mais desfavorecidas para os centros urbanos, à procura de uma melhor vida, originaram uma fuga da população activa destinada a determinadas tarefas, em especial às agrícolas. Daqui a necessidade, como diz Manuel Severim de Faria, de se servirem «os mais dos lavradores de escravos de Guiné e mulatos» e de se trazerem «cafres e índios para o serviço ordinário».

Ao escravo competia agora desbravar as terras, secar os pântanos e lançar as sementes. Nas cortes de 1472, o povo notou com regozijo o grande número de escravos que havia no reino, porque era exactamente com o seu serviço que se faziam os trabalhos necessários à fundação de novas povoações. Igualmente os escravos eram utilizados nos mais diversos serviços domésticos ou nos trabalhos de artífices que propositadamente os compradores lhes ensinavam para depois os colocarem como «escravos de ganho». Jerónimo Münzer, que nos fins do século XV visitou Portugal, referia serem muitos os negros que trabalhavam nos fornos das ferrarias dos arredores de Lisboa fabricando, entre outros objectos, as âncoras e peças de artilharia destinadas às viagens marítimas.

Pormenor do monumento a Sá da Bandeira, 1884
Largo de D. Luís em Lisboa
jdact

Na mesma condição encontravam-se os escravos que trabalhavam nos portos, na carga e descarga dos navios, nos serviços de limpeza das ruas e nas vendas ambulantes. Vagueavam pela cidade como carregadores, aguadeiros, caiadores, lavadeiras, vendedores de carvão, de guloseimas ou de roupas velhas, moços de recado e criados que os senhores exibiam como símbolos de ostentação. Para os transportes, quer marítimos quer fluviais, também se recorria à força do escravo, tanto na metrópole como nas colónias. É de salientar que nas viagens ao longo da costa africana muitos escravos negros desempenharam a importantíssima tarefa de intérpretes. Para o efeito, eram seleccionados os mais capazes e ensinados nos rudimentos da língua portuguesa. Münzer refere que D. João II possuía negros de várias cores e línguas diferentes «conhecendo, porém, todos a língua portuguesa».

Nas colónias, os escravos foram a pedra angular de toda a sociedade colonial. Luís dos Santos Vilhena, no século XVIII, classificou-os de maus trabalhadores, mas também reconheceu que, mesmo assim, eram os únicos que trabalhavam. Nas cidades ou nos campos, no interior ou no exterior das habitações, desempenhavam um sem número de tarefas e, sobretudo, constituíam a base da monocultura de exportação e das indústrias não artesanais. O seu esforço estava presente nas plantações de açúcar, nos engenhos, nos campos de algodão, na cultura do tabaco, na criação de gado, nas minas, na agricultura de subsistência e, a partir do século XIX, nas plantações de café e cacau». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.
Cortesia de Edições Colibri/JDACT