domingo, 29 de janeiro de 2012

Tempo de Escrita. Os Cães. Ibn Maruán. J. Caldeira Martins. «Mas há também quem se preocupe com os grandes mistérios do Universo e pretenda ajudar à paz cósmica acasalando o cão “Sol” com uma cadela “Lua”. Pela influência de Espanha, aqui ao lado, respondem as “Lolas”, os “Pepes”, as “Sevilhas”, restos sabe-se lá de que afectos e andanças»

Cortesia de cmmarvao

«Quem quiser saber da graça e dos gostos destas gentes de Marvão, há-de vir um dia comigo vacinar-lhes os cães. Deparamos com pessoas de todas as idades mas sempre alguém com memória de décadas recordará os alvoroços dos tempos dos cães raivosos. Por isso ali está, porque “seja que não seja, desde que se começou com isso da vacina nunca mais achegou a verem-se p’raí cães derramados”. E, ou com medo do regresso aos horrores do passado ou para fugirem às coimas do presente, certo é que poucos são os relapsos à privação. Como todos os anos por mim passam cães e donos, posso dizer, glosando o lugar-comum, que quanto melhor conheço os cães, mais sei dos gostos dos homens.

Temos por exemplo os cães-de-guarda. Aparecem por caminhos mal andamosos, arrastando com as imprecações do dono, renitentes a abandonarem o “paito” de todo o ano. Estranhados, esperam pacientemente a hora do regresso, a não ser que os donos, delegando neles o ajuste de desentendimentos antigos, discretamente os açulem para lutas formidáveis que logo acodem a dissuadir. Contrastando com estes, medra a classe do cão, chamemos-lhe… urbano. Vem à vontade, a chouto, sem açamo nem corrente ao ver aquele adjunto de parentes, aproxima-se enfastiado. Um reconhecimento breve e é a fatal atracção pelas rodas do automóvel em busca de conhecidos odores. Satisfeita a curiosidade, alça a perna sem pudor e deixa também a sua mensagem. Tenho para mim que cães desta condição só têm na vida uma certeza: as malas dos carros existem porque eles as merecem. Ai de quem se descuide a abrir a porta da bagageira com tais tratantes ali por perto. Obrigatoriamente irão entrar e refastelar-se que nem uns justos, sem pruridos na consciência. E a incompreensão com que recebem toda a diligência que educadamente empreendamos com vista ao seu despejo…

 
Cortesia de gearthb

De qualquer modo, tenho por estes sujeitos uma discreta afeição. Compartilhada, aliás, com uns que só nos visitam quando vem o Verão; animais de aspecto singular, caprichosos, extravagantes. São cães artistas, os cães dos títeres. Mas a falar deles não me perderei por serem ralos e estarem de passagem.
Outros que por aqui não abundam são os alontrados de gordos. Mesmo assim, os seus donos levarão dos circunstantes rodas de mal-governados ou desabafos do estilo “e ainda que o pão está caro…” Sabendo eu que aquilo até pode ser doença. Pouca cultura cientifica, é o que é!
Que volta a manifestar-se nos conselhos aos que trazem cães inçados de carraços, encanaviados, de peles sobrados e carnes fugidias, com as arcadas das costelas a quererem romper; então não faltará quem disserte sobre os malefícios de deixar dormir os cães dentro de canastros. Convenhamos que, mesmo sendo esta terra de canastreiros, não haveria vasilhame que chegasse.

Também um gentio são, neste concelho, os cães malhados. Uns, por características de pelagem. Outros, com um pau que é para aprenderem a conhecer o dono. E alguns acumulam. Isto a fazer fé nos donos, gente que gosta tanto de caçar como de caçoar. Nós todos sabemos como os caçadores têm pouco crédito nesta sociedade. Por falar em caçadores; uma boa maneira de os conhecer é atentear nos nomes que escolhem para os cães. Porei, a começar, os pouco imaginativos, que desde os primeiros ardores cinegéticos vêm mantendo dinastias de “Catitas” e “Doninhas” com quem acende cigarros em baronas mal apagadas. Depois vêm os incapazes de resistir à atracção clubista e, mesmo em tempos de menor fulgor desportivo, mantêm uma fidelidade canina ao Glorioso da Luz. Mas nem sempre como neste caso, o nome de cão simboliza simpatia, recordação agradável, homenagem. Veja-se o que acontece com os homens públicos, os políticos, os governantes, em que a frequência com que as suas graças são aproveitadas para chamadoiros de cães, é proporcional à animosidade que a população põe eles nutre. E tenho constatado que ainda hoje, a todos o pândita ‘Nehrú? Leva a palma. Ou será só uma questão de fonética?


Cortesia de workaway

Infelizmente escassos são os literatos. Ficam-se por um ou outro “Jau”, indício de olhos que terão passado como cães por vinha vindimada pela biografia de Camões ou que, na melhor das hipóteses, espreitam os “Bichos” de Torga. Mas há também quem se preocupe com os grandes mistérios do Universo e pretenda ajudar à paz cósmica acasalando o cão “Sol” com uma cadela “Lua”. Pela influência de Espanha, aqui ao lado, respondem as “Lolas”, os “Pepes”, as “Sevilhas”, restos sabe-se lá de que afectos e andanças.
Uma última categoria de caçadores são os de desígnios insondáveis. Quem me explicará o motivo que levou aquele sujeito dos Alvarrões a apelidar o rafeiro de “Popelina-a-Trinta-e-um”? vocação de tendeiro? Vício de charadista? Não sei.
Mas os mais das vezes os cachorros ainda vêm moirinhos. Por serem novelas ou porque as alcunhas se confundem com graçolas e insultos; daí os donos preferirem omiti-los. Quando assim é, ficam ao sabor do que, no momento, a minha imaginação ditar.

Como daquela vez lá em baixo, na Portagem, no Largo das Almas. (Nome bonito este, de todas as almas; almas boas, que de outro modo seriam espíritos; que os tempos a vir não o transformem no largo de uma alma só, mesmo que estimável, alma de político ou de comendador). Dizia eu que há anos, aí me apareceu o senhor Moreno com a sua matilha e o seu inseparável neto. Que eles não são nada um ao outro. O seu cachopo, que bacharel, vive com o avô o dia-a-dia das pessoas do campo, ganhando artes e práticas que de pouco lhe aproveitarão se, chegado a homem, um dia tiver que partir. Mas até lá, também moleiro há-de ser, como o foi toda a sua geração. Naquela matilha todos os anos os cães mudam mas os nomes persistem, repetidos e vulgares: “Catita, Andorinha, Pombinha”. Daí o meu espanto naquele dia:
- Senhor Moreno, como se chama o cão?
- “Independente”!
“Independente”? Onde é que este cidadão foi desencabecinar o “Independente”? Confesso que ainda pensei tratar-se de qualquer alusão às minhas incursões cíclicas por terras da política. Mas o senhor Moreno é homem respeitador, que não ia ter para comigo tal deselegância…
- “Independente”, senhor Moreno?!
- Bô!! Querêdes ver que já se não se vão alembrar? Tão o senhor é que o crismou, no ano passado. Até tirou o nome aí do rádio.

Mas esta! Ainda por cima o padrinho era eu. E era tal a convicção com o homem o afirmava que nem pensei sequer em duvidar. Mas… “Independente”? Que o tirei do rádio!... Espera, já sei!
Era uma daquelas situações em que não havia tempo para tentar descortinar no animal um tique, um gesto, uma parecença merecedora de um rótulo que minimamente lhe assentasse. Com pouca fé liguei o rádio do automóvel. Nem de propósito: Luís Cília, cantor de incomodidades, trinava as desditas de um marginal lisboeta – o ‘Lulu do Intendente’. À falta de melhor, fica este, pensei. E escrevi-o, com letra de forma, no Boletim de Identificação do canídeo. Por onde nunca mais o senhor Moreno passou a vista, nem precisa. Porque o animal ainda hoje só responde por “Contigo-se-parece”».
In J. Caldeira Martins, Ibn Maruán, Revista Cultural do Concelho de Marvão, Coordenação de Jorge Oliveira, nº 1, 1991.

Com a amizade do J. C. Martins, Alpalhão
Cortesia da C. M. de Marvão/JDACT